Fundo privado para ciência empaca no Congresso e gera dúvidas no setor

Projeto lançado pelo governo quer usar 'sobras' do que deveria ter sido investido por empresas

São Paulo

Lançado pelo governo federal há quatro meses, o fundo privado concebido para financiar pesquisas de alto nível e qualificar universidades e institutos nacionais está empacado no Congresso e ainda suscita dúvidas dentro da comunidade científica.

Os recursos do fundo, que podem chegar a mais de R$ 2 bilhões por ano, viriam sobretudo de empresas dos setores elétrico, de bioenergia e petróleo, de telecomunicações e de mineração, que têm de investir ou por contrato ou por dispositivos legais cerca de 1% da receita líquida em pesquisa e desenvolvimento.

Parte considerável desse montante, contudo, acaba não sendo investido, explica Abílio Baeta, presidente da Capes, órgão ligado ao MEC que lançou a iniciativa.

Pesquisadora analisa amostra de sangue em laboratório da USP
Pesquisadora analisa amostra de sangue em laboratório da USP - Diego Padgurschi /Folhapress

Isso ocorre porque, de acordo com o modelo atual, essas empresas têm a incumbência de construir projetos e encontrar instituições para desenvolvê-los. Quando isso não acontece, o dinheiro acaba se transformando em multas das agências reguladoras ou é transferido para o Tesouro Nacional.

 

Além disso, afirma Baeta, muitos dos projetos aprovados não têm avaliação de mérito, preocupação com resultados e acompanhamento.

"A ideia é usar esse recurso de forma mais qualificada e eficiente no desenvolvimento científico e tecnológico do país", diz o presidente da Capes. 

O fundo será atrelado ao Programa de Excelência de Universidades e Institutos, que vem sendo elaborado pelo MEC, e a intenção é provê-lo anualmente com o dinheiro das empresas que não tiver sido usado no ano anterior.

CONGRESSO

Inicialmente, o plano era aprovar o fundo por meio de medida provisória. No entanto, resistências dentro do Congresso quanto à utilização desse expediente levaram os proponentes da ideia a tentarem outra solução legislativa. 

Para se conseguir uma tramitação mais célere, buscou-se então apensar a criação do fundo a um projeto de lei que já estava em tramitação no Senado, após ter passado pela Câmara, e tratava da criação de fundos patrimoniais nas universidades --comum nos EUA e nos quais os rendimentos de doações são utilizados para financiar iniciativas das instituições.

Mas a expectativa da Capes de levar rapidamente o projeto para ser votado no plenário no Senado foi frustrada pelas disputas próprias do jogo político. 

A oposição ao projeto vem sendo capitaneada pelo Confies (Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior).

"Num ambiente de escassez de recursos para a ciência, de corte de verbas e de restrição de investimentos em inovação é difícil aceitar que se tire dinheiro de uma política de Estado que existe desde 1997 para colocar em outro programa, por mais meritório que seja", diz Fernando Peregrino, presidente do Confies. "É descobrir um santo para cobrir outro."

Os orçamentos do Ministério da Ciência e Tecnologia de 2017 e de 2018 foram, após seguidos cortes e contingenciamentos, os menores em mais de uma década. O orçamento de 2017 passou de R$ 5,9 bilhões para R$ 3,7 bilhões, e o de 2018 era inicialmente de R$ 4,5 bilhões e já caiu para R$ 4 bilhões. 

Na visão de Peregrino, a criação do fundo da Capes vai mutilar um programa de investimentos setoriais bem-sucedido nos últimos 20 anos.

"De 2000 a 2017, por exemplo, o país aumentou quase 50 vezes a produção de barris de petróleo. Isso foi resultado de investimentos feitos com essas verbas", afirma o presidente do Confies.

Baeta, da Capes, diz que o fundo não vai impedir nenhuma empresa de fazer os investimentos conforme a lei. "Ninguém será obrigado a colocar dinheiro no fundo, mas, se uma empresa não conseguiu investir regularmente, ela poderá transferir esses recursos para ele."

Para Peregrino, esse cenário é ilusório. "As empresas não só estão agastadas com a burocracia como têm de criar uma estrutura enorme para fomentar a pesquisa. Se você der a chance de elas se livrarem dessa incumbência, elas irão fazê-lo. Ou seja, vai se criar um incentivo para elas não aplicarem os recursos em setores estratégicos e esse dinheiro irá se pulverizar no balcão da Capes."

APOIOS E DÚVIDAS

Segundo Baeta, contudo, há grande apoio ao projeto --estão a favor entidades como a CNI (Confederação Nacional da Indústria), a Finep (financiadora pública de projetos), o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e a Andifes (associação nacional dos dirigentes das universidades federais), entre outras.

"A iniciativa nos parece boa porque pretende captar recursos adicionais às dotações orçamentárias regulares e destiná-los à internacionalização das nossas universidades e ao fortalecimento de sua estrutura de pesquisa", diz Emmanuel Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará e presidente da Andifes.

Para Tourinho, a proposta da Capes de alimentar o fundo apenas com os recursos que as empresas obrigadas a investir em pesquisa e desenvolvimento não tenham conseguido aplicar é uma maneira de garantir a utilização de 100% dessa verba na área.

Outros atores relevantes do meio científico e universitário, contudo, ainda mantêm certa reserva com relação à ideia. 

"Somos simpáticos à proposta, mas também temos algumas preocupações", diz Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). "Frequentemente no Brasil recursos carimbados como dinheiro novo acabam apenas substituindo o dinheiro antigo. Assim, precisa ficar muito claro que esse fundo não levará a uma redução do orçamento para a ciência."

Davidovich também teme possíveis prejuízos para as políticas de investimentos setoriais. "Seria péssimo, por exemplo, se a Petrobras, que financia pesquisas relevantes em várias instituições de pesquisa, resolvesse colocar no fundo todo o dinheiro que ela deveria investir."

Para o presidente da ABC, o único caminho para aplacar as preocupações e cotejar os diferentes pontos de vista é uma conversa franca e aberta entre todos os interessados.

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