Jornalistas publicam estudo falso sobre câncer e expõem falhas de revistas

Publicações chamadas de predadoras publicam artigos sem revisão, contanto que se pague

Paris e São Paulo | AFP

Jornalistas de dois veículos de comunicação alemães publicaram em uma revista científica de pouco renome um estudo falso sobre câncer como parte de uma investigação ampla sobre as publicações pouco criteriosas. A ideia era provar que qualquer pessoa pode fazer um dado científico falso se passar por verdadeiro, contanto que pague por sua publicação em uma revista especializada.

O estudo, que afirmava que o extrato de própolis é mais eficaz contra o câncer do que as quimioterapias convencionais, foi publicado no Journal of Integrative Oncology. A informação foi revelada pelo jornal francês Le Monde. Os jornalistas são do diário Süddeutsche Zeitung e da rádio pública NDR.

Própolis, obtida por meio de abelhas, não é mais eficaz contra o câncer do que quimioterapia, como alegava estudo falso - Pablo Saborido

“O estudo era fictício, os dados, inventados, e os autores, afiliados a um instituto imaginário, também não existiam. No entanto, a publicação foi aceita em menos de dez dias e publicada em 24 de abril”, segundo o Le Monde.

Além disso, o artigo fala, em sua conclusão, de outro tema que nada tem a ver com o câncer —o efeito de massagens nas doenças tromboembólicas.

A ministra alemã de Educação e Pesquisa, Anja Karliczek, elogiou o fato de esse tipo de erro vir à luz e se pronunciou a favor de uma investigação para determinar como esse estudo pôde ser publicado, “pelo interesse próprio da ciência”. 

Trata-se, porém, de fenômeno generalizado. Dezenas de editoras pouco escrupulosas criaram centenas de revistas de acesso livre com nomes chamativos e uma verdadeira aparência de publicação séria. 

Esse tipo de revista, conhecida como predadora, não controla a qualidade dos trabalhos apresentados e cobram de seus autores centenas de dólares pela publicação. Por trás da alcunha está a suposição de que acadêmicos bem intencionados são iludidos e levados a publicar seus trabalhos nelas —enganados por emails lisonjeiros enviados pelas publicações ou por nomes semelhantes aos de publicações respeitáveis que eles conhecem.

Mas está cada vez mais claro que muitos acadêmicos sabem exatamente o que estão fazendo, o que explica a proliferação desse tipo de publicação apesar das críticas generalizadas que elas recebem.

Alguns especialistas afirmam que o relacionamento não deveria ser comparado ao que existe entre predador e presa, mas sim a uma simbiose.

Muitos professores universitários — especialmente em instituições nas quais as horas de ensino são longas e os recursos escassos — se tornaram participantes ávidos de algo que os especialistas definem como fraude acadêmica, e o processo causa desperdício de dinheiro dos contribuintes, mina a credibilidade científica e serve para turvar pesquisas importantes.

“Quando centenas de milhares de artigos são publicados por revistas predadoras, é preciso ser muito crédulo para imaginar que todos os autores e as universidades para as quais eles trabalham são vítimas”, escreveu Derek Pyne, professor de Economia na Universidade Thompson Rivers, no Canadá, em artigo publicado pelo jornal canadense “Ottawa Citizen”.

O número de publicações em revistas predadoras disparou a mais de 10 mil nos últimos anos, e as revistas predadoras agora existem em número tão grande quanto o de revistas acadêmicas legítimas. “A publicação predatória se tornou uma indústria organizada”, escreveu um grupo de críticos da prática em artigo publicado pela revista “Nature”.

As publicações predatórias têm poucas despesas, já que não revisam seriamente os artigos que lhes são submetidos, e os publicam online. Elas disparam emails em massa a acadêmicos, convidando-os a publicar, e costumam alardear em seus sites que constam do índice do serviço Google Scholar, que compila publicações acadêmicas. Isso às vezes procede, mas o Google Scholar não verifica as credenciais das publicações indexadas.

Nas revistas mais prestigiosas, é necessária a revisão por parte dos chamados pares, ou seja, especialistas no mesmo assunto. O processo de validação pode durar meses e não é cobrado. 

Não é a primeira que esse tipo de experimento acontece. O americano John Bohannon, doutor em biologia molecular e também jornalista, ficou famoso por falsificar um estudo dizendo que chocolate poderia ajudar no emagrecimento.

Até o instituto de pesquisa era falso: “Institute of Diet and Health” (Instituto de Dieta e Saúde, supostamente localizado em Mainz, na Alemanha). Um site na internet foi criado para dar um ar de credibilidade, e ele trocou o primeiro nome: assinou como Johannes.

Depois foi fácil: divulgou um comunicado à imprensa. O resultado foi parar na capa do Bild, o principal jornal popular da Alemanha, e apareceu em veículos de mais de 20 países.

O objetivo de Bohannon era mostrar que a mídia especializada em dietas não tem critérios muito elevados. Além disso, mais que culpar a imprensa, queria mostrar que o fato de um artigo científico estar publicado em uma revista internacional com nome pomposo não quer dizer nada.

Recentemente, um grupo de pesquisadores inventou uma falsa acadêmica, a Dra. Anna O. Szust. A palavra “Szust” quer dizer “fraudadora”, em polonês. A Dra Szust enviou seu currículo a publicações acadêmicas legítimas e predatórias, solicitando um posto como editora. O currículo incluía publicações e diplomas completamente falsos, assim como eram falsos os nomes das editoras de livros para os quais ela afirmava ter contribuído.

As publicações legítimas rejeitaram sua candidatura imediatamente. Mas 48 das 360 publicações predatórias a aceitaram como editora. Quatro delas fizeram de Szust sua editora-chefe. Uma das publicações lhe enviou um email dizendo que “é um prazer para nós adicionar seu nome ao expediente da revista como editora chefe, sem quaisquer responsabilidades”.

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