Cientistas protestam contra cortes e divulgam seus estudos nas redes sociais

Pesquisadores usaram #existepesquisanobr e conseguiram engajamento elevado, segundo a FGV

São Paulo

"Eu pesquiso aglomerados de galáxias", escreveu a astrofísica Stephane Werner, mestranda da USP, no Twitter, "para, no fim, tentar entender como o Universo funciona". "Eu tento otimizar o tratamento de tuberculose para diminuir os efeitos colaterais", relatou o graduando de farmácia bioquímica @Araujo_Renan.  "Eu estudo o desenvolvimento de um tratamento alternativo contra leishmaniose cutânea, testando óleos extraídos de plantas da Amazônia, já usados na medicina popular", diz @Amanda_Hage. 

​Histórias como essas inundaram as redes sociais na última semana, acompanhadas da hashtag #existepesquisanobr. O tema ganhou força após as declarações de Jair Bolsonaro (PSL) no programa Roda Viva, no último dia 30. "Nós somos carentes nessa área, nós não temos pesquisa no Brasil", disse o candidato à Presidência.

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Boneco de Albert Einstein na Marcha pela Ciência na av Paulista em 2018 pediu mais investimentos na área - Folhapress

Dois dias depois, o conselho superior da Capes, maior agência de fomento à pós-graduação no país, emitiu uma nota endereçada ao MEC dizendo que, se o orçamento anual viesse como planejado, em agosto de 2019 não haveria mais recursos.

Outra onda de manifestações ganhou as redes sociais com a hashtag #minhapesquisacapes.
Protestos e explicações sobre inúmeras pesquisas desenvolvidas no país ganharam as redes e geraram um engajamento atipicamente elevado para os padrões do Twitter.

A geneticista Mayana Zatz disse que o corte seria "um desastre irreversível", o neurocientista Miguel Nicolelis chamou de "juízo final da ciência brasileira", e, para o climatologista Paulo Artaxo, a situação seria "surreal".

Werner recebe R$ 1.500 mensais da Capes para realizar sua pesquisa. "Temos que nos dedicar em tempo integral, não temos vale-refeição, vale-transporte e não há tempo para trabalhar em paralelo." Sem o auxílio, ela não teria como terminar o mestrado. "Meus pais não têm como me bancar. Eu teria que largar a carreira científica."

Marcela Latancia, doutoranda pelo programa de biotecnologia, também da USP, iniciou há dois meses uma pesquisa sobre resistência de tumores à quimioterapia. Ela, que recebe cerca de R$ 2.200 mensais, classificou a notícia como desesperadora. "Pensando como cidadã, é desperdício de investimento público."

Uma análise da FGV Dapp (Diretoria de Análise de Políticas Públicas) quantificou esse engajamento na rede social. Entre o início da tarde de quinta (2) e o meio-dia de sexta (3), foram 124.300 mensagens sobre o tema no Twitter. 

No pico das menções sobre o assunto, foram registrados 213 tuítes por minuto. Para os pesquisadores da FGV, a quantidade é expressiva, sendo comparável à menção de nomes de candidatos à presidência durante a participação em programas de TV.

Com as hashtags, predominou uma visão negativa sobre o futuro científico no Brasil. Uma das várias comparações feitas pelos internautas foi com o auxílio-moradia recebido por magistrados. 

Ildeu Moreira, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) afirma que a #existepesquisanobr é um primeiro passo, mas que não pode parar por aí. "Temos uma tradição no Brasil de a comunidade científica ser mais fechada em si mesma, com uma interação pequena com a sociedade. Temos que superar isso."

Os cientistas muitas vezes não divulgam suas pesquisas com a crença de que não serão compreendidos pela população leiga, de acordo com Carlos Hotta, cientista da USP que estuda o relógio biológico das plantas e que também entrou na #existepesquisanobr.

"O cientista pode educar a população cientificamente ao mesmo tempo em que ele divulga sua pesquisa", diz Hotta. "No cenário brasileiro, isso é uma obrigação. Um cientista que não faz isso, para mim, é um profissional incompleto."

As redes sociais podem servir como arma para que a população veja de modo mais transparente para onde vai —pelo menos na ciência— o dinheiro público. Além de, claro, ter contato com um mundo que parece inacessível. 

Procurados, o Ministério da Educação e o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão afirmam que a Proposta de Lei Orçamentária ainda pode sofrer alterações. "O Ministério da Educação reafirma que não haverá suspensão do pagamento das bolsas da Capes", diz, em nota, a pasta.


Entenda a crise da Capes
 

Origem

O orçamento da agência vem caindo ao longo dos anos e perdeu R$ 1 bi de 2017 para 2018, chegando a R$ 3,98 bilhões. O orçamento proposto para 2019 poderia ter mais 12% de deficit

Crise

No último dia 1º, o conselho superior da entidade enviou ao MEC uma nota dizendo que, se houvesse redução no orçamento da agência, compromissos, incluindo perto de 200 mil bolsas, não poderiam ser honrados a partir de agosto de 2019

Empurra

Questionado, o MEC dizia que o responsável pelos cortes era o Ministério do Planejamento, que, por sua vez,  alegava que era o MEC que não planejava priorizava a Capes na distribuição de seus recursos

Garantia

Depois de a discussão ganhar grandes proporções, o presidente Michel Temer afirmou que não vai deixar faltar recursos para a agência

 

Colaborou Gabriel Alves

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