Livro critica ideia de homem briguento e mulher cautelosa

Autora britânica usa arsenal científico contra estereótipos da testosterona

Reinaldo José Lopes
São Carlos

Dezenas de milhares de anos atrás, quando a humanidade lutava pela sobrevivência contra os monstros da Era do Gelo, os homens tinham de sair bravamente à caça de mamutes, enquanto as mulheres ficavam na caverna, cuidando de seus bebês. Isso explica por que os machos da nossa espécie costumam ser briguentos, aventureiros e promíscuos, enquanto as mulheres são carinhosas, cautelosas e monogâmicas.

Quase todas as palavras do parágrafo acima estão erradas, é claro, mas versões um pouco mais sutis desse cenário ainda costumam ser propagadas como fato científico. É contra essa visão estereotipada das diferenças de gênero que se insurge “Testosterona Rex”, livro de Cordelia Fine, professora de história e filosofia da ciência da Universidade de Melbourne, na Austrália.

Rambo aparece sem camisa, musculoso, disparando uma metralhadora
O ator Sylvester Stallone em cena de "Rambo" - Divulgação

Testosterona Rex”, editado no Brasil pelo selo Três Estrelas, do Grupo Folha, volta seu arsenal científico e retórico principalmente contra o hormônio masculino do título da obra —ou melhor, contra as caricaturas populares sobre o efeito da testosterona no organismo.

Como demonstram estudos recentes esmiuçados por Fine, as elevadas taxas do hormônio que circulam no corpo masculino são apenas um elemento, entre inúmeros, na complexa dança de interação entre os gêneros.

Assim, por exemplo, peixes ou primatas castrados, mas que tinham um histórico de agressividade e dominância mediados pelo contexto social, continuaram a bancar os “machões” (um dos motivos pelos quais a castração química de estupradores não seria a solução mágica imaginada por seus defensores, aliás).  

Se isso acontece entre espécies não humanas, é algo ainda mais verdadeiro no que diz respeito ao Homo sapiens. A tremenda versatilidade cognitiva e comportamental dos seres humanos faz com que diferenças culturais tenham bem mais peso do que a biologia na definição dos papéis de gênero.

Um exemplo claro disso envolve as variações de desempenho profissional entre homens e mulheres. É bem mais comum achar pessoas do sexo masculino em cargos elevados e com salários polpudos, o que levou alguns pesquisadores a postular a existência de diferenças intrínsecas de ambição e dedicação ao emprego entre os gêneros.

No entanto, diversos estudos mostram que chefes tendem a reagir de forma diferente a demonstrações de ambição por parte dos subordinados de cada sexo, tendendo a recompensar mais os homens do que as mulheres que querem subir na carreira. Desse modo, provavelmente por motivos culturais, cria-se um sistema distorcido de incentivos que tende a manter as moças em posições subalternas.

A ideia de que haveria diferenças marcantes entre os gêneros no que diz respeito à chamada “teoria da mente” —grosso modo, a capacidade de intuir as emoções e os sentimentos de outras pessoas— também é falsa, diz a autora.

“As mulheres costumam se considerar mais aptas nesse quesito do que os homens, mas testes diretos dessa hipótese indicam que, em média, os homens se saem tão bem quanto elas”, contou Fine à Folha.

Retrato de Cordelia Fine, professora de história e filosofia na Universidade de Melbourne
Cordelia Fine, professora de história e filosofia na Universidade de Melbourne - Universidade de Melbourne

O mesmo vale para o estereótipo de que homens teriam mais interesse por “coisas” ou “sistemas”, enquanto, entre o gênero feminino, predominaria o interesse por “pessoas”.

Ela explica que, quando se faz uma análise detalhada dos itens usados nas escalas experimentais para medir essas supostas diferenças de interesse, percebe-se que os pesquisadores muitas vezes não incluem “coisas” ou “sistemas” culturalmente associados a mulheres, como costurar um vestido, cozinhar um prato ou fazer um penteado— enviesando, dessa forma, o que conta nessas distinções.


Estereótipos e nuances sobre diferenças entre gêneros

Distância entre homens e mulheres parece ter apoio da biologia, mas cenário real é mais complexo

1) A visão tradicional
Do ponto de vista da teoria da evolução, parece fazer sentido imaginar que homens e mulheres tenderiam a se comportar de modo bastante diferente, por causa de seus diferentes papéis biológicos

HOMENS

  • Produzem centenas de milhões de espermatozoides a cada ejaculação
  • Podem fecundar diversas mulheres em poucos dias
  • Não são obrigados a gestar bebês nem cuidar diretamente deles
  • Conclusão: Suposta tendência "natural" à promiscuidade e a correr riscos

 
MULHERES

  • Liberam, em média, apenas um óvulo por mês
  • Quase nunca engravidam de mais de um parceiro
  • Além da gestação, precisam amamentar bebês durante meses
  • Conclusão: Suposta tendência "natural" à fidelidade e a evitar riscos

2) Uma visão mais equilibrada

  • Estudos de neurociência e comportamentais mostram que há grande variação entre pessoas, e que as diferenças entre homens e mulheres, presentes em médias populacionais, costumam ser sutis em quase todas as áreas
  • Estruturas sociais e culturais têm bastante peso sobre as diferenças comportamentais; quando elas mudam, com frequência as diferenças diminuem ou desaparecem

Os dados sobre as muitas áreas de sobreposição entre comportamento e mente masculinos e femininos não significam, é claro, que não haja diferença alguma entre os gêneros quanto a esses aspectos.

Pode-se considerar, por exemplo, o fato de que alguns problemas mentais afetam homens e mulheres em proporções diferentes, o que pode estar ligado a certas diferenças genéticas e hormonais que afetam de modo distinto o desenvolvimento cerebral de cada sexo. 

Investigar esses processos poderia levar a descobertas valiosas sobre suas causas (e a possíveis curas).
Mesmo nesse ponto, porém, é preciso cautela, adverte Fine. “O autismo é mais comum no sexo masculino, por exemplo. O fato de que os critérios para o diagnóstico do espectro autista foram baseados principalmente em pacientes homens pode fazer com que meninas e mulheres com autismo acabem não sendo diagnosticadas corretamente”, diz.

“Por outro lado, embora existam mais mulheres do que homens com anorexia e outros distúrbios alimentares, o fato de que temos tantas exigências culturais irrealistas a respeito do corpo feminino indica que genes e hormônios não devem ter muito a ver com essa diferença.”

Testosterona Rex: Mitos de Sexo, Ciência E Sociedade

  • Preço R$ 62,90 (336 págs.)
  • Autor Cordelia Fine (Tradução de Renato Marques)
  • Editora Três Estrelas

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.