Ciência europeia terá de ser publicada em revistas de acesso livre em 2020

Regra vale para cientistas que receberem financiamento de um grupo de 12 agências de países europeus

Paris (França)

​Produzir ciência tem um custo elevado. E obter conhecimento científico também. Um cientista que deseja publicar sua pesquisa escolhe hoje entre dois métodos principais: publicar em revistas que pertencem às grandes editoras científicas, como Elsevier e Springer (editora do grupo Nature), que cobram o acesso aos artigos, ou nas chamadas revistas de acesso aberto, que são isentas de taxas para leitura.

O problema do modelo atual é que, forçados pela hierarquização dos periódicos científicos, que são classificados de acordo com o fator de impacto, os pesquisadores frequentemente optam por publicar nas chamadas revistas tradicionais. E as universidades, que em geral financiam os projetos dos seus acadêmicos, pagam por taxas de assinaturas dos periódicos — basicamente, paga-se duas vezes para se obter a pesquisa produzida no próprio instituto. Mas isso tende a mudar.

No mês passado, um grupo de doze agências de fomento de países europeus mais a Comissão Europeia (principal órgão de fomento de pesquisa da União Europeia), chamado de “cOAlisão S” (do inglês, “cOAlition S”, sendo o OA de Open Access e o S de Science), lançaram um plano radical: todos os pesquisadores que receberam ou irão receber financiamento dessas agências devem publicar seus resultados em revistas de acesso aberto a partir de 1˚ de janeiro 2020.

Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares), na Suíça, um dos principais centros de pesquisa da Europa
Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares), na Suíça, um dos principais centros de pesquisa da Europa - REUTERS

As organizações participantes somam um financiamento anual de €20 bilhões (cerca de R$ 90 bilhões) em diversas áreas do conhecimento. Com esse montante elevado, os representantes esperam que as editoras científicas se sintam pressionadas a mudarem o seu sistema de publicação.

“As agências de fomento europeias sempre estiveram à frente das políticas de acesso aberto. No entanto, 15 anos depois da Declaração de Berlim [lançada em 2003 pelo Instituto Max Planck], descobrimos que o progresso em direção ao acesso aberto completo e imediato estava muito lento. Robert-Jan Smits (representante da Comissão Europeia) criou o Plano S, que foi em seguida desenvolvido por mim e por um grupo de diretores das organizações de fomento nacionais”, diz Marc Schilitz, presidente da Science Europe, associação das Organizações das Agências de Fomento (RFO, na sigla em inglês) e das Organizações de Performance dos Pesquisadores (RPO, na sigla em inglês) europeias.

Além da justificativa de que a ciência deve estar disponível para todos, as agências alegam que os preços cobrados pelas editoras científicas para assinatura dos periódicos pelas universidades chegam a valores impraticáveis, o que acaba fragilizando o orçamento das mesmas.

“Diversas instituições de pesquisa europeias têm tido dificuldade em negociar com as grandes editoras preços de assinaturas mais em conta, então decidimos por uma ação rápida e efetiva de acesso aberto, eliminando completamente as publicações em periódicos que cobram assinaturas”, completa Schilitz.

Os periódicos científicos mais prestigiados, como Science e Nature cobram, em média, US$ 30 (R$ 116,40) por artigo para uma única leitura. Se desejar assinar para ter acesso o ano inteiro, o leitor ou a biblioteca podem gastar pelo menos US$ 254 (R$ 985,52) por ano por revista.

A Universidade de São Paulo gastou, em 2016, R$ 9,38 milhões para a aquisição e manutenção de 1.104 títulos diferentes, segundo dados disponíveis na plataforma Sistema Integrado de Bibliotecas da USP (SiBiUSP). O Portal de Periódicos da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), que provê para 414 instituições de ensino superior e pesquisa o acesso a mais de 40 mil títulos (incluindo periódicos), gastou, em 2017, R$ 402 milhões em assinaturas.

As editoras científicas, por sua vez, afirmam que o valor cobrado é para os custos de editoração e publicação. Mas mesmo periódicos que são exclusivamente eletrônicos cobram taxas semelhantes para acesso aos artigos.

Segundo Bo-Christer Björk, pesquisador em políticas de acesso aberto da Escola de Economia Hanken, em Helsinki, grandes editoras científicas como a Elsevier, que contém mais de 2.500 títulos, lucram de 30% a 40% ao ano somente com o valor arrecadado através de assinaturas.

De acordo com Björk, o acesso aberto é o futuro para a ciência porque representa o modo como a ciência evolui, de forma rápida, acessível e com bom custo-benefício. O acesso aberto permite, ainda, que outros setores, como a indústria, o mercado e os próprios governos tenham acesso à informação científica que pode auxiliar em novas políticas públicas e tecnologias.

“Os autores fazem todo o trabalho de pesquisa e entregam para as editoras sem receber nada. Os editores encaminham para os revisores, que também fazem o serviço sem serem pagos. Em seguida, as editoras publicam os artigos, detendo totalmente os direitos autorais sobre a publicação, e depois vendem para as mesmas instituições o acesso à sua pesquisa. É inaceitável”, diz.

Por isso, muitos cientistas tentam “burlar” as regras do sistema. O exemplo mais conhecido é a plataforma de artigos pirata Sci-Hub. Criada em 2011 pela neurocientista cazaque Alexandra Elbakyan, a plataforma possui mais de 50 milhões de artigos, correspondendo a 85% dos títulos publicados em revistas de acesso pago. Centenas de milhares de downloads são feitos por dia. A plataforma, que é ilegal, levou Elbakyan a receber um processo em 2015 da editora Elsevier.

Além do Sci-Hub, muitos cientistas distribuem seus artigos em redes sociais de pesquisadores como o ResearchGate ou trocam os arquivos via emails ou grupos de laboratórios. As editoras científicas, que detêm os direitos sobre os artigos, proíbem tais práticas, mas elas são largamente disseminadas.

No Brasil, políticas de acesso aberto existem há 20 anos. A plataforma SciELO (Scientific Electronic Library Online), financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) é pioneira mundial em acesso aberto.

Segundo o cofundador e diretor da plataforma Abel Packer, o modelo SciELO de publicação em acesso aberto é replicado em 16 países (incluindo a maior parte da América Latina e a África do Sul). 

“O portal possui uma contribuição dupla, que é a de promover o desenvolvimento da pesquisa no Brasil, através da produção de periódicos de qualidade, e fazer com que esses periódicos aumentem a sua visibilidade internacional, o que consequentemente aumenta o seu fator de impacto. Temos o objetivo, assim, de produzir a disseminação da ciência, totalmente aberta e gratuita”, diz.

A plataforma possui 290 periódicos nacionais e 1.250 internacionais indexados, e um aporte de mais de 700 mil artigos. “Temos uma média de 1,5 milhão de downloads por dia, e metade vem do Brasil. Como consequência, a América Latina se tornou, proporcionalmente, a região do mundo que mais publica em acesso aberto”, completa.

A característica principal do portal, que é aumentar a visibilidade da produção científica nacional, segue sendo cumprida plenamente, segundo levantamento realizado pelo portal e pela Fapesp em reunião de comemoração de do 20º aniversário, ocorrido no final de setembro. Ainda há entraves, porém, principalmente no que diz respeito ao incentivo federal.

Segundo Packer, faltam no Brasil políticas de incentivo à continuidade dos periódicos nacionais. A Capes, órgão ligado ao Ministério da Educação e responsável pelos programas de pós-graduação no Brasil, realiza a cada quadriênio a classificação de periódicos Qualis, onde as revistas são classificadas de acordo com o fator de impacto por área.

Periódicos classificados como “A1”, por exemplo, são, em sua maioria, revistas internacionais de alto impacto, e os periódicos científicos nacionais, muitos dos quais são relevantes e de alto prestígio na pesquisa científica brasileira, não figuram entre os primeiros ranqueados. Isso implica na escolha de publicação dos pesquisadores, pois publicar em periódicos classificados como A1, A2 ou B1 traz benefícios na forma de maior investimento para manutenção e fomento dos seus laboratórios e pesquisas.

É o caso, por exemplo, da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Fundada em 1909 e mantida pelo instituto, é um dos mais antigos periódicos brasileiros, possui grande prestígio internacional em pesquisas de doenças tropicais e destaca-se como uma revista totalmente de acesso aberto nessa área.

Por outro lado, sua avaliação no Qualis da Capes a coloca abaixo de diversas revistas menos importantes na área de saúde, por serem revistas maiores e com maior fator de impacto.

Para Claude Pirmez, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz e editora executiva do periódico, a revista tem contribuído muito para o conhecimento de doenças infectoparasitárias em âmbito global, mas ainda há resistência de pesquisadores brasileiros, que tendem a publicar em revistas internacionais tradicionais por terem “maior fator de impacto”.

“A nossa ciência tem sido medida somente pelo fator de impacto, que é originalmente um índice bibliométrico, ou seja, tem a função de calcular as citações de um artigo ou revista, mas passou a ser utilizado para avaliar o pesquisador. O problema é que essa avaliação apresenta um erro conceitual, pois o fator de impacto mede quantas vezes aquela revista foi citada, e não quantas vezes um único artigo foi citado. Em uma revista, em torno de 20% a 30% dos artigos são muito citados, e o restante são artigos pouco citados que ‘vão na onda’ desses 20%. Então cria-se uma falsa impressão de que o fator de impacto avalia a qualidade e o prestígio do cientista”, completa.

Para Abel Packer, no entanto, não deve existir uma penalização para os pesquisadores que publicam em periódicos tradicionais em relação aos de acesso aberto, mas, sim, uma política de bonificação pelas agências de fomento nacionais para que os pesquisadores brasileiros publiquem em revistas de acesso aberto, pois isso levaria à melhora da nossa produção científica como um todo.

“Hoje, entre 20% e 30% da produção científica nacional apenas é publicada em periódicos brasileiros indexados no portal SciELO. Como a procura é baixa e não há incentivo para a publicação em acesso aberto, a qualidade dos periódicos não evolui, e a produção científica brasileira permanece estagnada. É um tiro no pé”, completa.

Muitas das revistas internacionais que são acesso aberto cobram dos autores uma taxa para a publicação, que seria equivalente aos custos de editoração do manuscrito. Essa taxa pode variar de US$ 1.200 a US$ 3.500 (de R$ 4.600 a R$ 13.500 reais, aproximadamente). Os periódicos nacionais, por sua vez, são em maioria gratuitos para publicação, e mesmo os que cobram, as taxas são bem inferiores em comparação às praticadas no exterior.

“Para nós, o acesso aberto é o default, então essa conversa [da cOAlisão S] não é novidade. Quando cobramos uma taxa ela é de no máximo US$ 500 (R$ 1.940), mas muitos são financiados pelos próprios institutos de pesquisa, com incentivos para publicação em periódicos”, define Pirmez.

O porta-voz da cOAlisão S, Marc Schilitz, entende que as taxas praticadas pelos periódicos de acesso aberto estrangeiros são muitas vezes elevadas para pesquisadores de países em desenvolvimento, mas afirma que o plano pretende apoiar também os periódicos que não cobram taxas de publicação. “Não temos a intenção de adotar um único modelo de acesso aberto. Reconhecemos que esse [periódicos que não cobram taxa de publicação] é um modelo importante, particularmente para a manutenção dos periódicos associados a instituições ou sociedades acadêmicas sem fins lucrativos”, completa Schilitz.

“Esperamos que o Plano S dê os meios para a comunidade científica retomar o controle total do sistema de publicação, implementando o acesso aberto completo e imediato. A iniciativa nasceu na Europa, mas estamos no momento em contato com outras comunidades e agências no mundo todo para integrarem a cOAlisão S”, finaliza.

Como nasce um artigo científico

  1. O cientista recebe financiamento (do governo, agência federal ou estadual ou privado), produz a pesquisa e submete o manuscrito a um periódico (de uma grande editora)

  2. O editor científico da revista faz uma leitura inicial do manuscrito, geralmente para identificar qual a área ou o tema principal do artigo, e o envia para dois (ou três, no caso de divergência de pareceres) revisores, especialistas na área da pesquisa (processo chamado de revisão por pares ou peer review)

  3. Os revisores então recebem o manuscrito e fazem a análise de conteúdo. Podem sugerir modificações ou identificar erros na metodologia. O editor, com os pareceres em mãos, dá a decisão final se o artigo deve ser aceito, aceito com modificações ou rejeitado

  4. Durante todo o processo, tanto autores quanto revisores não recebem nada pelo trabalho. Com algumas exceções, os editores científicos também não são pagos pelo serviço prestado.

  5. Depois, o mesmo cientista “paga” para a editora para ter acesso ao seu próprio artigo, via assinatura da sua universidade ou instituição de pesquisa.

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