Descrição de chapéu Leonardo da Vinci, 500

Estudo obsessivo da luz e da visão está por trás de obras geniais de Da Vinci

Artista foi pioneiro da aplicação do método científico à arte e pesquisou com afinco as propriedades físicas e matemáticas da luz

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O resultado das tentativas obcecadas de Da Vinci de compreender como luzes e sombras se comportam no mundo real são obras-primas como "A Última Ceia" Reprodução

São Carlos

Não foi apenas a genialidade em estado bruto que transformou Leonardo da Vinci (1452-1519) no pintor mais famoso de todos os tempos. Pode-se dizer que o artista italiano foi o pioneiro da aplicação do método científico à arte, estudando com afinco as propriedades físicas e matemáticas da luz para conferir a seus quadros uma vivacidade ímpar.

Da Vinci também usou seus talentos como anatomista para tentar entender como as imagens eram captadas pelo olho humano e transmitidas ao cérebro, alcançando alguns insights sobre o tema que só seriam confirmados séculos mais tarde.

O resultado dessas tentativas obcecadas de compreender como luzes e sombras se comportam no mundo real são obras-primas como “A Última Ceia” (reproduzida abaixo), “Mona Lisa” e outras menos conhecidas, como “Dama Com Arminho” e “La Belle Ferronière”, nas quais cada detalhe de como os raios luminosos adentram um ambiente e ricocheteiam em pessoas e objetos foi pensado com antecedência. Eis um dos grandes motivos pelos quais Leonardo demorava para terminar seus quadros e deixou muitos deles inacabados: sua meta era a perfeição científica, e não apenas artística.

Duas palavras italianas que entraram para o vocabulário técnico das artes plásticas ajudam a entender como o mestre florentino concebia a pintura. Os termos-chave são sfumato (literalmente “esfumado”, algo que se desfaz como fumaça) e chiaroscuro (“claro-escuro”, o uso de contrastes entre luz e sombra).

“As sombras e luzes que desenhais devem se mesclar sem linhas ou fronteiras, à maneira da fumaça que se perde no ar”, escreveu Leonardo numa coleção de máximas dedicadas a jovens pintores (que ele não publicou em vida, assim como ocorreu com quase todos os seus textos).

Com efeito, observações e experimentos de óptica que realizou ao longo da vida o levaram a concluir que o olho humano nunca capta linhas totalmente definidas separando um objeto do outro, mas gradações contínuas, que um artista habilidoso é capaz de reproduzir.

“Entre a luz e a escuridão há uma variação infinita, porque a quantidade delas é contínua”, escreveu ele. (Essa visão predominaria até a revolução da física quântica no século 20, quando se descobriu que, na verdade, existem “pacotes” não contínuos e indivisíveis de luz, os fótons ou partículas luminosas, mas a percepção humana usual bate com a afirmação de Leonardo.)

Traçando diagramas da propagação dos raios luminosos em seus intermináveis cadernos, Da Vinci estipulava regras para o ambiente imaginado de seus quadros levando em consideração as proporções entre os objetos pintados e a fonte de luz hipotética que os ilumina.

“Se o corpo é maior do que a luz, a sombra lembra uma pirâmide invertida e truncada, e seu comprimento também não tem uma terminação definida. Porém, se o corpo é menor do que a luz, a sombra lembrará uma pirâmide e chegará a um fim, como se vê nos eclipses da Lua”, detalhou o mestre em suas anotações.

“Ele criou diversas categorias de sombras e propôs escrever capítulos sobre cada uma delas em seu futuro tratado sobre o tema, nunca publicado”, diz um de seus biógrafos, o escritor americano Walter Isaacson, no livro “Leonardo da Vinci”. Entre elas estavam: sombras primárias criadas pela luz incidindo diretamente sobre um objeto, sombras derivadas que resultam da luz ambiente se difundindo pela atmosfera, sombras suavemente “salpicadas” pela luz refletida em objetos próximos —a lista é longa.

Entre seus rascunhos sobreviveu também um desenho detalhado dos nervos ópticos, que saem da parte de trás do olho e se encaminham para o cérebro, levando as informações visuais para o órgão.

Da Vinci dissecou dezenas de cadáveres para obter esses dados, chegando até a criar uma técnica específica voltada para a análise post-mortem do olho humano. Para evitar que o delicado tecido ocular mudasse de forma quando fosse cortado, ele recomendava o seguinte: “Deve-se colocar o olho inteiro dentro de uma clara de ovo, fervê-la até ficar sólida e depois cortar o ovo e o olho transversalmente, para que a porção média do globo ocular não seja derramada”.

Juntando essas observações ao raciocínio matemático, Leonardo concluiu que as imagens não eram formadas pela incidência da luz num único ponto do olho, mas de forma “espalhada” em diversos pontos da retina (na verdade, na época dizia-se que isso acontecia na pupila), o que se revelou correto.

Por outro lado, acabou “travando” na tentativa de entender como o olho consegue corrigir as imagens, que deveriam chegar de ponta-cabeça ao cérebro ao passar pela abertura da pupila. “Ele não percebeu que o próprio cérebro é capaz de fazer esse ajuste”, escreve Isaacson.

A capacidade de observação prodigiosa de Leonardo também permitiu que ele reproduzisse os gestos associados às emoções humanas de modo que não alcançaria paralelos em sua época (e que, de certa maneira, antecipa os estudos que psicólogos e naturalistas, incluindo o próprio Darwin, fariam sobre o tema no século 19).

O resultado mais emblemático disso é o “cinema” dos gestos dos apóstolos em “A Última Ceia”. Cada gesto e expressão são espelhos do estado de espírito dos personagens no drama retratado pelo artista. 

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