Perereca de 120 milhões de anos do CE ajuda a traçar origens de mil espécies

Semelhança do bicho com parentes modernas é indício do êxito evolutivo de sua 'forma padrão'

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São Carlos

Um animal que media apenas 3,5 cm e morreu há cerca de 120 milhões de anos, em plena Era dos Dinossauros, está ajudando os cientistas a reconstruir as origens das mais de mil espécies de anfíbios que existem hoje no Brasil. Apesar da idade recuada, o bichinho lembra muito certas pererecas modernas.

Com efeito, a Cratopipa novaolindensis, encontrada nas rochas da chapada do Araripe (interior do Ceará), tem parentesco relativamente próximo com espécies de hoje cujos hábitos são totalmente aquáticos, com corpo bastante achatado e patas da frente e de trás palmadas. São os chamados pipídeos, uma família que inclui mais de 40 espécies sul-americanas e africanas, em geral também de tamanho modesto.

O fóssil, que acaba de ser apresentada à comunidade científica em artigo na revista especializada South American Earth Sciences, está entre os anuros (grupo dos anfíbios sem cauda, como rãs, sapos e, claro, pererecas) mais antigos do país, diz o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, do Departamento de Geologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele é um dos responsáveis pela descrição do animal, junto com colegas de Brasília, do Ceará e da Argentina (país onde outros anuros sul-americanos um pouco mais recentes, e aparentados ao bicho nordestino, foram descobertos anteriormente).

Como acontece com diversos outros fósseis vindos do Araripe, o grau de preservação do pequeno anfíbio é espantoso. Além do esqueleto completo, há resquícios de tecidos moles, como pele, músculos e tendões.

Na época em que o animal viveu, o início do período Cretáceo, a região parece ter passado por períodos alternados de fortes secas e momentos mais úmidos. Nas fases de mais chuva, a C. novaolindensis costumava nadar em pequenos córregos da região, capturando invertebrados.

Ao comparar os detalhes da anatomia do anuro com o de outros membros fósseis de seu grupo, como os da Argentina e da África, os pesquisadores vislumbraram uma história complicada de idas e vindas entre os continentes envolvendo esses anfíbios.

É que, nessa época, a separação entre as massas de terra sul-americana e africana (antes unidas numa só região, o Gondwana) já estava em pleno curso, com a abertura do oceano Atlântico. Mas por aqui existia tanto um grupo exclusivo da América do Sul (ao qual pertencia o animalejo cearense) quanto outro mais próximo das formas da África.

Para que tal cenário se montasse, a ideia é que teria havido algum tipo de trânsito entre os continentes nessa época, talvez por intermédio de uma cadeia temporária de ilhas no Atlântico nascente, já que os anfíbios quase nunca conseguem cruzar a água do mar vivos.

Aliás, é praticamente certo que o animalzinho não vivia no local onde acabou se fossilizando, mas foi transportado pela correnteza para lá por volta do momento de sua morte. O motivo é simples: o ambiente que possibilitou a preservação do esqueleto seria totalmente inóspito para qualquer tipo de anfíbio.

“Era um ambiente lacustre cuja água tinha graus altíssimos de sais. Considerando a permeabilidade da pele desses animais, nenhuma perereca conseguiria viver nesse contexto —o organismo dela rapidamente entraria em colapso”, explica Carvalho.

Por outro lado, a laguna salina abrigava colônias de bactérias que acabaram produzindo uma espécie de sarcófago para a C. novaolindensis. Envelopando a carcaça do bicho, usando-a como substrato, elas se puseram a retirar gás carbônico da água e a usá-lo para formar carbonato de cálcio, o que conduziu à mineralização dos restos mortais.

Além disso, as elevadas concentrações de sais nas partes mais fundas da laguna provavelmente impediam que a água de baixo se misturasse muito com a das camadas mais rasas, deixando o cadáver do anuro sossegado por longos períodos.

Isso acontece porque a água que contém grandes quantidades de sais dissolvidas nela fica mais densa e, portanto, afunda. Tais processos provavelmente explicam o espantoso grau de conservação da perereca e de outros fósseis do Araripe, como pterossauros (répteis voadores) e peixes.

“Não era um bom local de vida, mas era um excepcional ambiente de morte do ponto de vista da preservação”, resume o pesquisador.

Para Carvalho, a extraordinária semelhança entre a perereca de 120 milhões de anos e suas parentas modernas é um indício do grande êxito evolutivo dessa “forma padrão” do animal. “Parece que de fato existem alguns padrões morfológicos mais interessantes, que permitem uma relação com o espaço ecológico mais duradoura.”  

O estudo teve apoio da Faperj (fundação estadual de fomento à pesquisa do Rio de Janeiro) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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