Nobel de Medicina vai para pesquisas sobre como células percebem oxigênio

Descobertas de trio de cientistas possibilitam desenvolvimento de terapias contra anemia e câncer

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São Paulo

Os ganhadores do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2019 são William G. Kaelin, da Escola de Medicina da Universidade Harvard (EUA), Peter J. Ratcliffe, da Universidade de Oxford (Reino Unido), e Gregg L. Semenza, da Universidade Johns Hopkins (EUA), por suas pesquisas sobre o comportamento de células de acordo com a disponibilidade de oxigênio.

Já se conhece há séculos o papel fundamental do oxigênio para animais, que necessitam dele para transformar comida em energia a partir da ação das mitocôndrias, mas pouco se sabia sobre como as células se adaptam às mudanças nas concentrações de oxigênio no ambiente. 

Da mesma forma que uma vela depende de uma certa quantia de oxigênio para manter sua chama, as células precisam se adaptar ao oxigênio disponível no ambiente. O processo de mudança nos níveis de O2 pode ser alterado em diferentes altitudes (como na Bolívia ou no Peru) ou mesmo quando uma pessoa se fere. 

Os pesquisadores conseguiram desvendar o maquinário molecular que regula a atividade de genes dependendo dos níveis de oxigênio, afetando o metabolismo celular e o funcionamento fisiológico.

Os estudos sobre como o oxigênio é percebido pelas células abriram caminho para novas estratégias de tratamento contra a anemia e o câncer. 

Os vencedores, anunciados na manhã desta segunda-feira (7), no Instituto Karolinska, na Suécia, dividirão igualmente o prêmio de 9 milhões de coroas suecas, o equivalente a cerca de R$ 3,7 milhões.

Segundo Randall S. Johnson, pesquisador da Universidade de Cambridge na área de fisiologia molecular que comentou a láurea, as descobertas dos três pesquisadores são fundamentais no entendimento de como as células funcionam, um tipo de conhecimento que estará nos livros escolares. 

O corpo carotídeo, que fica próximo a grandes vasos sanguíneos nos dois lados do pescoço, é uma das estruturas que ajuda na percepção de oxigênio pelo organismo e na rápida resposta a baixos níveis de oxigênio. A descoberta do impacto desse elemento no controle da frequência respiratória, a partir da percepção dos níveis de oxigênio na corrente sanguínea, já rendeu um Nobel de Medicina a Corneille Heymans, em 1938.

O hormônio eritropoietina (EPO) também participa desse processo de ajuste. Conforme ocorre a hipóxia (diminuição na taxa de oxigênio), aumentam os níveis de EPO, o que leva ao crescimento da produção de hemácias (glóbulos vermelhos), importantes na condução do oxigênio pelo corpo.

Mas, ainda que o mecanismo hormonal fosse conhecido desde o início do século 20, não se sabia como esse sistema era controlado pelo oxigênio.

E é aí que entram os laureados de 2019. Semenza e Ratcliffe estudaram o gene relacionado ao hormônio EPO e descobriram que os mecanismos de percepção de oxigênio estão presentes em basicamente todos os tecidos do corpo e em diferentes tipos celulares, e não somente nas células renais, órgão no qual o EPO é produzido. 

 

A partir de células renais cultivadas, Semenza descobriu um complexo proteico —chamado fator induzido por hipóxia (HIF)— que se liga ao DNA dependendo da quantidade de oxigênio disponível. Com o aprofundamento de seus estudos, conseguiu identificar os genes relacionados ao HIF.

O fator induzido por hipóxia se resume a dois fatores de transcrição (HIF-1alfa e ARNT), ou seja, proteínas que permitem a ligação entre DNA e RNA, e a formação de novas proteínas.

O HIF-1alfa é sensível ao oxigênio e está presente em maiores quantidades quando os níveis de O2 são baixos, o que possibilita a regulação de EPO e maior produção de glóbulos vermelhos.

Em momentos em que os níveis de O2 estão normais, a quantidade de HIF-1alfa nas células diminui. 

Isso pode ser exemplificado por atletas que treinam em altas altitudes, ou seja, locais com menor quantidade de O2 disponível, segundo Thiago Moreira, professor associado do departamento de fisiologia e biofísica da USP. Quanto mais glóbulos vermelhos —produzidos graças à sensibilidade do HIF-1alfa à baixa presença de 02—, mais oxigênio será transportado e maior será o número de vasos sanguíneos. 

"Por isso, o atleta que treina em altas altitudes tem uma melhor performance em termos fisiológicos", diz Moreira. 

A pesquisa de Kaelin entra em cena nesse momento. O cientista de Harvard especialista em câncer estudava a síndrome de von Hippel-Lindau (conhecida como doença de VHL), enfermidade genética que aumenta o risco de câncer nas famílias que sofrem com a condição.

O gene VHL ajuda na prevenção da manifestação do câncer. Kaelin descobriu que células cancerígenas com funcionamento anormal do VHL têm elevados níveis de genes regulados por hipóxia, o que era normalizado quando o gene de VHL era introduzido nessas células. 

Ratcliffe, por sua vez, conseguiu mostrar que VHL interage fisicamente com o HIF-1alfa e é importante para sua degradação.

Finalmente, Kaelin e Ratcliffe, ao mesmo tempo, descobriram em 2001 as últimas peças que faltavam. Os cientistas descobriram que, em níveis normais de oxigênio, grupos hidroxila (OH) se conectam a duas áreas específicas do HIF-1alfa, o que permite que o VHL identifique e se ligue ao HIF-1alfa, provocando, assim, a degradação da proteína com a ajuda de enzimas sensíveis ao oxigênio e o equilíbrio do sistema.

A ideia pode ser comparada a um sistema de alerta que pode ser ligado e desligado, diz Marília Seelaender, professora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. "O HIF é um botão de alarme que fala quando não há oxigênio. O VHL é o interruptor que liga e desliga o alarme."

Estavam decifrados os mecanismos de percepção e resposta do organismo aos níveis de oxigênio.

A descoberta do balanceamento desse sistema é importante porque tem potencial de afetar desde o nosso nascimento até atividades básicas do nosso. A percepção dos níveis de oxigênio é essencial, por exemplo, ao desenvolvimento fetal, com a formação de vasos sanguíneos e crescimento da placenta.

No dia a dia, durante exercícios físicos, o mecanismo também é importante para que as células se adaptem à variação de disponibilidade de oxigênio. 

Da mesma forma, a importante influência do maquinário sensitivo está presente em doenças e as pesquisas acadêmicas e farmacêuticas agora estão concentradas em desenvolver drogas para interferir e alterar o maquinário sensível ao oxigênio. Contudo, as drogas que se utilizariam desses mecanismos ainda não têm muitos exemplos palpáveis, diz Agnaldo Anelli, oncologista-clínico do HCor (Hospital do Coração).

Mas as descobertas têm amplas possibilidade de aplicações, segundo Seelaender, que atualmente tem uma de suas alunas trabalhando, com auxílio de uma bolsa Fapesp, junto a Ratcliffe, ganhador do Nobel. Alguns tipos de tumores, por exemplo, não utilizam muito oxigênio. Ao aumentar a presença do O2, pode-se ajudar no combate à doença. 

"Até para doenças respiratórias pode ser importante. Não consigo nem ver um limite para uso disso", diz a pesquisadora da USP. "Você pode manipular qualquer célula."

Além do prêmio em dinheiro, cada um receberá uma medalha com a inscrição “É benéfico ter melhorado a vida humana pelas artes descobertas” (frase presente em “Eneida”, poema de Virgílio) e um diploma. O dinheiro é derivado de um fundo de 4 bilhões de coroas suecas —cerca de R$ 1,6 bilhão.

A láurea é destinada a pesquisadores que fizeram as descobertas mais importantes no campo da fisiologia ou medicina, segundo o testamento de Alfred Nobel (1833-1896), inventor da dinamite.

O Nobel de Medicina é entregue desde 1901 e, desde então, não foi destinado a nenhum pesquisador em nove ocasiões entre os anos de 1915 e 1942. Durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, menos láureas foram distribuídas. 

Na distribuição de prêmios por gênero, o Nobel de Medicina é a láurea científica (Medicina, Física e Química) que mais premiou mulheres até agora —foram 12 entre 216 laureados. Considerando todos os prêmios (incluindo Paz, Literatura e Economia), o da Paz foi o que mais premiou mulheres, com 17 ganhadoras entre 133 laureados. 

No ano passado, o Nobel de Medicina ficou com o americano James P. Allison e com o japonês Tasuku Honjo pelas descobertas ligadas ao combate do câncer com imunoterapia —com drogas que potencializam o sistema imune contra as doenças.  

Basicamente, a imunoterapia consegue tirar o “disfarce” do tumor para o corpo luta contra o problema. Trata-se de uma arma a mais no combate ao câncer, junto com quimioterapia, cirurgia e radioterapia. 

Em 2017, três americanos, Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash e Michael W Young, foram premiados pelas descobertas dos mecanismos moleculares por trás dos ritmos circadianos

Para chegar aos nomeados à láurea, o Comitê do Nobel envia mais de 3.000 cartas confidenciais para pessoas competentes e qualificadas, como membros da Assembleia do Nobel no Instituto Karolinska, pesquisadores da área médica e biológica da Academia Real Sueca de Ciências e ganhadores anteriores do prêmio, para indicar os candidatos ao Nobel. Autoindicações não são consideradas.

Após as indicações serem avaliadas por especialistas, o Comitê do Nobel faz recomendações e, por votação, os 50 membros da Assembleia do Nobel no Instituto Karolinska escolhem os vencedores.

Na história, já foram premiadas com o Nobel de Medicina as descobertas da estrutura do DNA por James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins (1962), da penicilina por Fleming e outros (1945), da estrutura do sistema nervoso (1906), da insulina (1932), da relação entre HPV e câncer (2008), e da fertilização in vitro (2010).

Nesta terça (8) será anunciado o Nobel de Física e, na quarta (9), o de Química. Também serão anunciados nesta semana os prêmios de Literatura, na quinta (10) e da Paz, na sexta (11). Na próxima segunda (14), será a vez do prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que dizia uma versão anterior deste texto, os prêmios de Física e Química serão anunciados nesta semana, e não entregues. 

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