Agência ambiental dos EUA vai limitar uso de ciência nas regras de saúde pública

Nova regulamentação pode também ter efeitos retroativos, sobre regras já em atividade

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Lisa Friedman
Washington | The New York Times

O governo Donald Trump está se preparando para limitar significativamente o uso de pesquisas científicas e médicas pelo governo para regulamentações de saúde pública, ignorando protestos de cientistas e médicos que dizem que a nova regra solaparia as bases científicas do processo decisório do governo.

Um novo rascunho da proposta da Agência de Proteção Ambiental (EPA), intitulado “Reforçando a Transparência na Ciência Regulatória”, requereria que os cientistas revelem todos os seus dados brutos, entre os quais registros médicos confidenciais, antes que a agência considere as conclusões de um estudo acadêmico.

Dirigentes da EPA definiram o plano como um passo rumo à transparência e disseram que a revelação de dados brutos permite que as conclusões sejam verificadas de maneira independente.

Andrew Wheeler,  administrador da EPA (Environmental Protection Agency), e o presidente americano Donald Trump
Andrew Wheeler, administrador da EPA (Environmental Protection Agency), e o presidente americano Donald Trump - Anna Moneymaker - 8.jul/The New York Times

“Temos um compromisso para com a ciência da maior qualidade”, disse Andrew Wheeler, o administrador da EPA, a um comitê do Congresso, em setembro. “Ciência boa é ciência que pode ser reproduzida e validada de forma independente, ciência que possa ser submetida a escrutínio. É por isso que estamos indo em frente para garantir que a ciência que sustenta as decisões da agência é transparente e está disponível para o público e todas as partes interessadas.”

A medida tornaria mais difícil aplicar novas regras quanto à poluição do ar e água, porque muitos dos estudos que detalham as ligações entre poluição e doenças dependem de informações sobre saúde pessoal recolhidas sob acordos de confidencialidade. E, diferentemente de uma versão da proposta que emergiu no começo de 2018, o novo texto se aplicaria retroativamente aos regulamentos de saúde pública que já estão em vigor.

“Isso significa que a EPA pode justificar a revogação de regras ou a não atualização de regras baseadas nas melhores informações disponíveis sobre a proteção da saúde pública e do meio ambiente, o que significa mais poluição do ar e mais mortes prematuras”, disse Paul Billings, vice-presidente sênior de campanhas da Associação Pulmonar Americana.

Especialistas em saúde pública alertam que estudos que vêm sendo usados há décadas —para demonstrar, por exemplo, que o mercúrio das usinas de energia prejudica o desenvolvimento do cérebro, ou que o chumbo contido no pó de tintas está vinculado a distúrbios de comportamento em crianças— poderiam ser inadmissíveis quando chegar a hora de renovar os regulamentos vigentes.

Por exemplo, um estudo decisivo da Universidade Harvard em 1993 vinculou diretamente o ar poluído a mortes prematuras, e serve como fundação às leis de controle da qualidade do ar dos Estados Unidos, atualmente, mas poderia se tornar inadmissível.

Ao recolher dados para sua pesquisa, o chamado “Projeto Seis Cidades”, os cientistas assinaram acordos de confidencialidade para acompanhar os históricos médicos privados e os históricos ocupacionais de mais de 22 mil pessoas nas seis cidades envolvidas. Eles combinaram esses dados pessoais a dados sobre a qualidade do ar a fim de estudar o vínculo entre exposição crônica à poluição do ar e mortalidade.

Mas o setor de combustível fóssil e alguns legisladores republicanos há muito criticam a análise e um estudo semelhante conduzido pela Sociedade Americana de Câncer, afirmando que os conjuntos de dados que embasam ambos os estudos jamais foram tornados públicos, o que impede uma análise independente das conclusões.

A mudança é parte dos esforços mais amplos do governo para enfraquecer as bases científicas das decisões políticas. Importantes funcionários do governo Trump tentaram abrandar os depoimentos de cientistas do governo, criticaram publicamente cientistas que discordaram das posições do presidente Trump e impediram pesquisadores do governo de viajar a conferências nas quais apresentariam seus trabalhos.

Nesse caso, o governo está tomando por alvo estudos de saúde pública conduzidos fora do governo que poderiam justificar apertos na regulamentação sobre a poluição do ar, presença de mercúrio na água, de chumbo em tintas, e outras potenciais ameaças à saúde humana.

Scott Pruitt, antigo administrador da EPA, fez da publicação dos dados científicos que servem de base a pesquisas uma importante prioridade, e tentou aprovar uma proposta nesse sentido em regime de urgência, em 2018.

Pruitt renunciou em julho do ano passado, e Wheeler, seu sucessor, postergou a adoção da regra de transparência e deu a entender que a EPA precisava de tempo para enfrentar a oposição vigorosa das organizações ambientais e de saúde pública.

Mas um rascunho da regulamentação revisada, que seria enviado para revisão pela Casa Branca e foi obtido pelo The New York Times, mostra que o governo pretende ampliar o escopo da proposta, e não restringi-lo.

A versão anterior da regulamentação teria se aplicado apenas a um certo tipo de pesquisa, estudos de “resposta de dosagem”, nos quais níveis de toxicidade são estudados em animais e seres humanos. A nova proposta requereria aceso aos dados brutos de virtualmente todos os estudos que a EPA venha a considerar.

“A EPA está propondo uma aplicação mais ampla”, o texto afirma, esclarecendo que os dados abertos não deveriam se limitar a determinados tipos de estudo.

O mais significativo é que a nova proposta teria aplicação retroativa. Um memorando interno da EPA, ao qual o jornal The New York Times teve acesso, mostra que a agência considerou, mas terminou rejeitando, uma opção que poderia ter permitido que estudos essenciais como o "Projeto Seis Cidades" de Harvard continuassem a ser usados.

Uma porta-voz da EPA afirmou, via email, que “a agência não discute rascunhos, documentos deliberativos ou ações antes do processo de revisão interna e interagências”.

Na quarta-feira, o Comitê de Ciência. Espaço e Tecnologia da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos realizará uma audiência sobre os esforços da EPA. Um importante especialista em questões pulmonares e um representante da maior organização sem fins lucrativos envolvida no financiamento de pesquisas sobre o Mal de Parkinson, a Michael J. Fox Foundation, devem testemunhar que a regra proposta pela EPA eliminaria o uso de pesquisas valiosas que demonstram os perigos da poluição para a saúde humana.

A proposta original de Pruitt atraiu cerca de 600 mil comentários, a vasta maioria dos quais negativos. Entre eles havia pareceres de importantes organizações de saúde pública e de algumas das principais organizações científicas dos Estados Unidos, como a Associação Americana para o Progresso da Ciência.

A Associação Nacional de Enfermeiros Pediátricos se declarou “fortemente preocupada” com a possibilidade de que a regra resulte na exclusão de estudos, “resultando por fim em proteções ambientais e de saúde mais fracas e em riscos maiores para a saúde das crianças”.

O Centro Nacional de Educação para a Ciência afirmou que descartar os estudos que não empregam dados abertos “enviaria uma mensagem profundamente enganosa e ignoraria os processos ponderados que os cientistas empregam para garantir que todas as provas relevantes sejam consideradas”.

A Associação de Bibliotecas Médicas e a Associação de Bibliotecas Acadêmicas de Saúde afirmaram que a proposta “contradiz nossos valores centrais”.

Grupos empresariais afirmam que a regra garantiria uma compreensão pública mais profunda da ciência por trás dos regulamentos que custam dinheiro aos contribuintes.

“Transparência, reprodutibilidade e aplicação de conhecimentos científicos correntes são essenciais para oferecer a fundação requerida para regulamentação sólida”, escreveu o Conselho Químico Americano em apoio ao plano da EPA.

A nova versão não parece ter levado em consideração qualquer das objeções dos críticos. Em uma reunião do conselho consultivo de ciência da EPA, algumas semanas atrás, Wheeler disse que estava ”um pouco chocado” com a intensidade da oposição à proposta, mas que estava determinado a finalizá-la.

Além da retroatividade, a versão mais recente estipula que todos os dados e modelos usados em estudos sob consideração pela EPA teriam de ser colocados à disposição da agência para que esta possa reanalisar as pesquisas. O administrador da agência, um indicado político, teria amplo poder para aceitar e rejeitar estudos.

“Era difícil imaginar que eles pudessem piorar ainda mais a proposta, mas conseguiram”, disse Michael Halpern, diretor assistente do Centro pela Ciência e Democracia da Union of Concerned Scientists, uma organização ativista. Ele acrescentou que “o processo está sendo completamente politizado”.

Os acadêmicos tipicamente não precisam entregar dados privados quando submetem estudos a revisão por outros especialistas em seus ramos, ou para publicação em revistas acadêmicas, as formas tradicionais de avaliação científica. Se os acadêmicos tivessem de entregar os dados brutos para revisão pública, a EPA precisaria gastar centenas de milhões de dólares para censurar informações privadas, de acordo com uma estimativa federal.

O "Projeto Seis Cidades" e um estudo da Sociedade Americana do Câncer em 1995 envolvendo 1,2 milhão de pessoas, que confirmou as conclusões da equipe de Harvard, parecem ter inspirado a regulamentação.

A proposta dá prazo de 30 dias para comentários públicos sobre o plano da EPA. Dirigentes da agência disseram que esperam concluir o processo em 2020.

“A meta original era impedir que a EPA confie nesses dois estudos a não ser que seus dados sejam tornados públicos”, disse Steven Milloy, que fez parte da equipe de transição de Trump na EPA e dirige o site Junkscience.org, que questiona a ciência quanto à mudança do clima e afirma que a presença de particulados na poluição atmosférica não prejudica a saúde humana.

Ele descartou preocupações de que a nova regra possa ser usada para desmontar regulamentação existente, mas disse esperar que ela impeça que a regulamentação contra a poluição endureça. “A realidade é que os padrões não vão endurecer enquanto um republicano estiver na presidência”, ele disse.

Tradução de Paulo Migliacci

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