Estação científica na Antártida será reaberta sob temor de falta de verbas

Base brasileira pegou fogo em 2012; inauguração ocorre em cenário de corte de bolsas de estudo

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São Paulo

A nova base brasileira para pesquisas científicas na Antártida será inaugurada no próximo dia 14 sob o temor de que os recentes cortes orçamentários federais nas áreas de ciência e educação afetem os estudos na região.

O presidente Jair Bolsonaro, que estaria presente na cerimônia, cancelou sua ida alegando recomendação médica.

Além da histórica instabilidade de financiamento do ProAntar (Programa Antártico Brasileiro), em 2019 o contingenciamento do governo federal também atingiu bolsas de estudo, obrigando alunos de pós graduação a desistirem de suas pesquisas.

Destruída por incêndio em fevereiro de 2012, a estação Comandante Ferraz teve investimentos de US$ 100 milhões e foi reconstruída por uma estatal chinesa. Abriga 17 laboratórios, tem capacidade para até 65 pessoas e é uma das mais modernas na região.

“Ganhamos uma Ferrari, maravilhosa, linda. Temos laboratórios que muitas universidades não têm. Mas tem que ter gasolina, insumos para os laboratórios, alunos fazendo pesquisa. Se não tiver, a Ferrari não anda, vai enferrujar.”

O desabafo é do botânico Paulo Câmara, professor da UnB (Universidade de Brasília), que realiza pesquisa com plantas da Antártida há seis anos e também ajudou a montar os novos laboratórios da base científica, que fica a ilha Rei George.

Em 2018, foi aberto um edital de R$ 18 milhões para pesquisa científica na Antártida. O montante banca atividades de 17 projetos por quatros anos, R$ 4,5 milhões ao ano.

Segundo pesquisadores, com a mudança de governo, R$ 2 milhões em bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que já estavam empenhadas, não foram aplicados. Outros quase R$ 4 milhões estariam em suspenso.

Essas bolsas de estudo são fundamentais para formar novas gerações de pesquisadores. Só países com atividade científica, que hoje somam 29, podem ter voz e voto no Tratado da Antártica, que regula as atividades no continente. O Brasil se tornou membro em 1975 e membro consultivo em 1983, com o ProAntar.

A Antártida representa 10% do território do planeta, com 70% da água doce do mundo e imensas reservas intocadas de gás, minérios e petróleo.

“As pessoas podem achar que é muito dinheiro para estudos, mas não. É uma pesquisa internacional, que depende do dólar. Quem tem um projeto de R$ 1 milhão, tem menos US$ 250 mil. Os equipamentos, reagentes, tudo é importado”, explica o microbiologista Luiz Henrique Rosa, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), coordenador de projeto que estuda fungos na região.

Para Câmara, a instabilidade dos recursos é um entrave. “O edital anterior tinha duração de três anos, mas o dinheiro teve que durar cinco. Agora, o edital de R$ 18 milhões virou um de R$ 12 milhões [o governo federal não confirma esse corte]. A todo momento corta-se bolsas de estudo. Não há garantia de continuidade de recursos. Os novos cientistas dependem dessas bolsas para fazer pesquisa”, diz ele.

Rosa lembra que o trabalho de pesquisa na Antártida é apenas uma parte, 30% do que tem que ser feito. O resto, a transformação em produção científica, ocorre no Brasil, nas universidades.

“A maior parte dos bolsistas é vinculada aos programas de pós-graduação. Se o governo corta essas bolsas de pós, os alunos não têm como se manter e o programa [antártico] perde também”, diz Rosa.

Segundo o contra-almirante Sérgio Guida, responsável pela etapa final da reconstrução da base antártica, a maior reclamação não é sobre eventuais cortes de verbas ocorridos neste ano, mas em relação à inconstância do financiamento para as pesquisas.

“Essa pouca constância no repasse de recursos trazem impacto. Os pesquisadores reclamam com razão. O dinheiro vai acabando e eles não conseguem mais ir para lá [Antártida]. Perde-se pesquisador antártico em que se investiu dois, três anos para formar.”

Em nota, o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) nega que tenha havido contingenciamento dos recursos para o ProAntar e diz que a terceira e última parcela relativa aos recursos do edital seria paga até o final de 2019.

Em relação às bolsas da Capes, o ministério afirma que o CNPq estabeleceu um acordo para a implementação de ações no ProAntar no valor de R$ 5,72 milhões. O valor das bolsas nos projetos aprovados em situação P1 (projeto aprovado, já com recurso garantido) foi de R$ 1,87 milhão.

Informa ainda que existe saldo de R$ 3,85 milhões em bolsas (mestrado, doutorado e pós-doutorado) que poderia ser alocado em P2 (projetos aprovados, mas sem recursos garantidos) e que há uma demanda de bolsas para três projetos, no valor de R$ 721,6 mil. O ministério não informou, porém, se e quando esses recursos serão liberados.

“Se tem dinheiro sobrando dessas bolsas, porque não passaram ainda para os P2? Cadê o dinheiro? Tive que dispensar dois excelentes alunos de pós-doutorado porque a gente não conseguiu bolsas. Quem vai tocar o programa daqui a alguns anos é essa turma que precisa de bolsas hoje, é a nova geração de pesquisadores antárticos”, diz Paulo Câmara.

Além das pesquisas sobre o potencial uso de plantas da Antártida como fontes de fármacos e cura de doenças, Câmara também estuda os efeitos do aquecimento global.

Essa região é a que mais esquenta no mundo. Muita planta chega aqui, mas não se estabelece porque é muito frio. À medida que vai esquentando, mais e mais plantas vão se estabelecer. A gente precisa saber o que está chegando e de onde está chegando para fazer o manejo adequado.”

São mais de cem espécies de plantas já identificadas na região. “Muita gente pensa que aqui só tem gelo. Não é assim. Tem planta, tem bicho, tem muita vida”, afirma.

Luiz Rosa, da UFMG, realiza pesquisas na Antártida desde 2006 e está na 12ª operação na região. Nesse período, o grupo descobriu espécies selvagens de fungos produtores de substâncias antimicrobianas, antivirais (contra o vírus da dengue, por exemplo), e pesticidas com potencial uso na agricultura.

“Devido ao isolamento geográfico e às condições extremas, os fungos que sobrevivem daqui têm vias metabólicas diferenciadas, que podem gerar substâncias como antibióticos”, explica.

Já foram reportados cerca de mil espécies de fungos na Antártida, 1% do que já foi descrito no mundo (105 mil).

Uma das maiores preocupações na construção da nova base científica foi com a segurança. No incêndio de 2012, dois militares morreram.

“A redução dos riscos de incêndio foi quase uma obsessão”, diz o contra-almirante Sérgio Guida, gerente do Programa Antártico Brasileiro.

Em todas as unidades foram instaladas portas corta-fogo, sensores de fumaça e alarmes de incêndio. Nas salas das máquinas e geradores, as paredes são feitas de material ultrarresistente, que suportam as chamas por duas horas.

Com o novo sistema de telecomunicações da empresa Oi, que permite videoconferências, a proposta é que médicos também possam ajudar em atendimentos à distância por meio da telemedicina.

Segundo Guida, as obras da estação já estavam praticamente prontas em março passado, mas não havia material de pesquisa, que foram os últimos itens a serem comprados. “Não fazia sentido inaugurar uma estação de pesquisa sem material de pesquisa.”

As condições meteorológicas extremas, que só permitem obras no verão, também tiveram impacto no atraso. Ainda assim, afirma, os percalços foram poucos comparados aos de outros países que realizam obras na região.

“O Reino Unido enfrenta muita evacuação aeromédica, muitos funcionários com problemas de saúde [que precisam ser deslocados]. Como fizemos [a obra] com empresa que escolheu funcionários da área mais fria da China, não tivemos problemas relevantes.”

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