Instituto de matemática, no Rio, terá duas pesquisadoras em 2020; veja quem são elas

Machismo e falta de mulheres em posição de destaque são obstáculos na busca por equidade

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São Paulo

O número de pesquisadoras no Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), no Rio, vai dobrar em 2020 —em vez de uma, serão duas ao todo. Algo semelhante aconteceu somente nos anos 1980, por um curto período.

Luciana Luna Lomonaco, que até 2019 era professora do Instituto de Matemática e Estatística da USP, se juntará a Carolina Araújo. Elas são as únicas mulheres entre os cerca de 40 pesquisadores contratados pela instituição.

Luna, 34, nasceu em Bresso, nos arredores de Milão, na Itália, e cresceu em Peschiera del Garda, um vilarejo próximo a Verona. Apesar da beleza do local, as lembranças não são tão boas, diz ela. "A mentalidade ali era muito fechada. A professora de matemática pegou raiva de mim, pois eu sabia quase mais do que ela. Tive experiências bizarras na escola."

O azar acadêmico não terminou por aí. Ela entrou na Universidade de Pádua em 2004 e teve de lidar com o machismo. "Alguns professores não tinham paciência e eram arrogantes, além de passar o conteúdo de uma forma axiomática, pesada. Eu entrei na matemática por razões filosóficas, claro que eu ia perguntar bastante. Ainda lembro das várias vezes que fui maltratada. Se você precisava de um desenho para entender algo, era tratado como idiota."

A italiana Luciana Luna Lomonaco estuda o conjunto de Maldelbrot, famosa estrutura fractal; ela foi a primeira mulher a receber o prêmio SBM de Matemática, em 2019 - Marlene Bergamo/Folhapress

Tudo mudou quando foi para a Espanha ("Tinha a língua mais parecida com o italiano!") para um período-sanduíche na graduação. "Quando eu perguntava, o professor respondia, e sem desprezo!" Ali trabalhou com lógica, na interface entre matemática e filosofia. 

Luna voltou à Universidade de Barcelona para o mestrado, em sistemas dinâmicos —aqueles cuja configuração se altera ao longo do tempo.  "Aí comecei a me sentir mais apreciada, me trataram com um ser humano. Não sei se é algo do país, não conheço outras universidades, mas nunca me senti motivada a voltar para a academia italiana."

Uma oportunidade de fazer o doutorado com uma bolsa de estudos surgiu na Dinamarca. Ela não hesitou em mudar de país mais uma vez.

​Carolina Araújo, 43, a quem Luna se junta no Impa, costuma participar de discussões sobre matemática e gênero. Segundo ela, a falta de mulheres na área se dá por conta de um machismo estrutural. "Só recentemente as mulheres começaram a ter carreiras independentes e a entrar em ambientes historicamente dominados por homens", diz.

Na maior parte das vezes, afirma, essas barreiras surgem de maneira inconsciente, e as meninas começam a pensar que aquele lugar não é para elas. Um estudo publicado na revista Science em 2015 por pesquisadores dos EUA mostra que mulheres tendem a ser minoria em áreas em que se espera mais brilhantismo nato do que esforço.

A maternidade agrava o quadro, conta Araújo, que tem um filho de três anos, especialmente quando a mãe ainda não tem uma carreira consolidada. "Muitos dos cuidados com casa e família ainda recaem sobre a mulher. Não existe uma intenção em excluí-la das atividades profissionais, isso é feito sem que as pessoas se deem conta. Uma possibilidade é construir ambientes mais acolhedores para mães. Felizmente, vários colegas têm se sensibilizado." 

Marcelo Viana, diretor do Impa e colunista da Folha, afirma que a questão de gênero na matemática é mais aguda do que em outras áreas, mas que o Brasil não está nem atrás nem na frente de outros países nessa discussão. 

O instituto ainda não bateu o martelo quanto ao emprego de ações afirmativas (cotas), diz Viana, mas já pôs em prática o incentivo à participação de mulheres nos concursos, como no caso de Luna. "Assim, as mulheres matemáticas bem-sucedidas podem virar modelos para as mais novas", afirma.

O Impa, conta Viana, atua em outras frentes com esse objetivo, como na organização do TM², olimpíada nacional de matemática para meninas (organizada e corrigida apenas por mulheres) e no financiamento e treinamento de meninas para olimpíadas internacionais. Houve ainda em 2019 o primeiro Encontro Brasileiro de Mulheres Matemáticas.

Hoje, Luna trabalha com o conjunto de Mandelbrot, um dos fractais mais famosos. Sua contribuição para essa área de pesquisa foi demonstrar que as chamadas cópias-satélites, que brotam a partir da figura principal, não são tão parecidas entre si quanto se supunha. Fractais são figuras que exibem os mesmos padrões em diferentes escalas, como se a mesma imagem surgisse ao "dar zoom" em um pedaço da figura original.

Era um problema que já estava aberto havia duas décadas, com apostas entre matemáticos de quando e se seria resolvido. Entre os ingredientes dessa macarronada matemática estão números complexos (que contêm uma parte real e uma imaginária), transformação de um plano infinito em uma esfera e velocidade de giro de espirais, entre outros.

A pesquisa rendeu a Luna dois prêmios, o L'Oréal-Unesco-ABC Para Mulheres na Ciência em 2018 e o Prêmio SBM de Matemática, da Sociedade Brasileira de Matemática em 2019. Ela foi a primeira mulher a conquistar este último. Além disso, ela recebeu um financiamento de R$ 100 mil do Instituto Serrapilheira para sua pesquisa.

A italiana chegou ao Brasil em 2014 após passar um período na China para fazer um pós-doutorado na USP, onde se tornou docente em 2016.

"Não sei por que, mas me sinto muito livre no Brasil. Aqui há mais oxigênio, as pessoas se comunicam de uma forma mais honesta, matematicamente falando", diz ela, que elogia o espírito colaborativo de seus colegas da USP.

E o Impa, sua nova casa, é "o lugar dos sonhos". "Minha primeira reação quando me ligaram dizendo que havia passado no concurso foi chorar. Sou italiana, bastante dramática. E eles seguraram por um ano a vaga, porque eu já havia assumido algumas aulas no IME."

Ela afirma estar preocupada com o financiamento da ciência no Brasil e no mundo, que, de uns tempos para cá, avalia, vem pendendo para um certo imediatismo, deixando as chamadas ciências básicas ou fundamentais de lado. "Quando [Alan] Turing pensou no computador, ninguém via aplicação para ele. Me dá medo essa tendência de que tudo precisa ser aplicado daqui a 15 minutos."

No longo prazo, argumenta, somente países que investem em pesquisas fundamentais se desenvolvem. "Se você não faz algumas coisas 'à toa', sem necessariamente ter uma aplicação na cabeça, você nunca vai saber até onde pode ir."

Foi esse mesmo amor pela ciência básica que motivou Carolina Araújo a seguir a carreira de matemática. Filha de pais engenheiros, a niteroiense também gostava de biologia e física na escola. Na PUC-Rio, fez o ciclo básico, comum para engenharias, física e matemática, no primeiro ano. Mas os cursos mais avançados de matemática a encantaram. "O raciocínio, as deduções e a filosofia da ciência matemática me conquistaram", diz.

Araújo passou um ano da graduação na Universidade da Califórnia em Berkeley, entre 1997 e 1998, o que lhe abriu portas para o doutorado, que cursou em Princeton, também nos EUA.

"Mas sempre tive um forte sentimento de pertencimento ao Brasil. Quando vinha durante as férias, participava de conferências, construía contatos." Quando terminou o doutorado, em 2004, iniciou no Impa um estágio de pós-doutorado, período em que o pesquisador começa a constituir de forma mais autônoma sua própria linha de pesquisa.

Carolina Araújo trabalha com geometria algébrica, área da matemática que se vale de propriedades geométricas para entender equações - Raquel Cunha/Folhapress

Ela começou trabalhando com geometria diferencial, área que abarca, por exemplo o estudo da forma e da característica de objetos e da curvatura de superfícies. Mas também gostava de álgebra, área que está mais ligada aos símbolos (que aparecem no lugar de números) e às regras para trabalhar com eles, como na resolução de equações.

Em Berkeley, Araújo chegou a flertar com a lógica, mas acabou misturando geometria e álgebra no doutorado e em sua atual linha de pesquisa. É a chamada geometria algébrica. Ela exemplifica: a equação x²+y²=1, da mesma forma que é pura álgebra, também pode ser interpretada como uma circunferência de raio 1.

"Em casos mais complicados, nem sempre a gente consegue resolver a equação, mas olhando para aspectos geométricos é possível aprender algumas características qualitativas deles", explica.

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