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Morre o engenheiro Ricardo Rodrigues, pai de dois aceleradores de partículas brasileiros

Ele liderou a equipe que criou a primeira fonte de luz síncrotron do hemisfério Sul

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Claudia Izique Gabriel Alves
São Paulo | Agência Fapesp

Antonio Ricardo Droher Rodrigues morreu na sexta-feira, 3 de janeiro, aos 68 anos. Engenheiro civil formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor em Física pelo King's College, University of London, foi responsável pelo projeto dos aceleradores dos dois síncrotrons brasileiros: o UVX, o primeiro do hemisfério Sul, inaugurado em 1997, e o Sirius, seu sucessor, em fase final de implementação, ambos no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem), em Campinas.

O UVX e O Sirirus são máquinas que ajudam os cientistas a estudar a composição e comportamento de materiais ou moléculas com alta resolução, a partir de radiação síncrotron, um tipo especial de luz.

Ricardo, como era conhecido, nasceu em Curitiba, em 10 de novembro de 1951, e era casado com Liu Lin, líder do grupo de Física de Aceleradores do LNLS. "Quando iniciamos o projeto, ninguém sabia como fazer, era algo desafiador e foi feito do zero —foi o Ricardo que liderou esse começo", diz Lin. " A gente não sabia o que ia enfrentar, mas estávamos muito entusiasmados em fazer uma coisa nova. 

"O Ricardo incentivava todo mundo. Todos ficávamos com vontade de trabalhar e nos divertíamos —era algo gostoso", diz a esposa. "Havia muitas dificuldades técnicas e não havia dinheiro. Mas, como Helmut Wiedemann, de Stanford, dizia, às vezes um pouco de falta de dinheiro —só um pouco, ou tudo acaba— ajuda a despertar a criatividade."

Além de Liu Lin, Ricardo deixa três filhos, Erica, Kevin e Ian, e uma bela porção de admiradores. O corpo do cientista foi cremado no sábado (4), em Campinas.

“Ricardo foi um engenheiro genial, responsável pela parte principal no projeto do primeiro Síncrotron UVX. Foi também quem projetou o Sirius e dirigiu as operações que levaram ao seu sucesso como grande obra instrumental para a ciência, inteiramente projetado e, em grande parte [80%], construído no Brasil”, diz Rogério Cezar Cerqueira Leite, presidente do Conselho do Cnpem. “Além do mais, foi sempre um pesquisador dedicado, gentil e modesto. Enfim, um exemplo de cientista e cidadão para todos os brasileiros.”

Mesmo em tratamento de um câncer no pulmão, Ricardo Rodrigues presenciou a volta de elétrons no anel de Sirius, em 25 de novembro de 2019, segundo a assessoria de comunicação do Cnpem.

Ele também apareceu para uma foto dois dias depois, quando a equipe conseguiu gerar corrente suficiente para fazer chegar a luz síncrotron pela primeira vez em uma das futuras estações experimentais do Sirius . “Fizemos por ele. E ele ficou muito feliz”, diz Antonio José Roque da Silva, diretor-geral do Cnpem.

“O Ricardo era um gênio”, afirma o físico Cylon Gonçalves da Silva, que liderou o projeto de construção de UVX, no início dos anos 1980 e que dirigiu o LNLS de 1986 a 1998. “Conheci muita gente excepcional, mas inteligência técnica e capacidade criativa como a dele eu nunca vi. Não era vaidoso, mas sabia o que valia. Era um líder extraordinário pela generosidade. A comunidade brasileira deve muito a ele.”

No segundo ano de graduação na engenharia civil da UFPR, Ricardo Rodrigues começou a estudar óptica de raios X, orientado por Cesar Cusatis, coordenador do Laboratório de Óptica de Raios X e Instrumentação no Departamento de Física. “Era uma pessoa excepcional”, lembra Cusati. “Saiu da graduação e foi imediatamente aceito como aluno de doutorado no King´s College, tendo como orientador Michael Hart, o inventor do interferômetro de raios X", conta Cusati. "Quando voltou ao Paraná foi um suporte fundamental para nosso laboratório”, ele conta.

Três anos depois, transferiu-se para o Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), de São Carlos, onde Cusati tinha feito o doutorado na área de cristalografia de RX, orientado por Ivone Mascarenhas. “Ricardo Rodrigues é um cientista de alto padrão e um dos personagem mais importantes na história recente da ciência brasileira”, diz Sérgio Mascarenhas, professor aposentado do Instituto de Física da USP de São Carlos

Essa trajetória conferiu a Ricardo Rodrigues uma formação excepcional. “Tinha uma visão prática, conferida pela engenharia, interessava-se por eletrônica e, ainda durante a graduação, fez iniciação científica em óptica e instrumentação de raios X”, afirma o diretor-geral do Cnpem. 

Assim, quando Roberto Lobo, presidente do Centro Brasileiro de Pesquisa Física (CBPF), começou a montar o Comitê Executivo do Projeto Radiação Síncrotron – que daria origem ao primeiro síncrotron brasileiro e ao LNLS – Ricardo Rodrigues era um candidato natural. “Era só dizer que um projeto era difícil que ele mordia a isca”, afirma Cylon Gonçalves.

Ricardo Rodrigues passou a integrar o Comitê Executivo do projeto em outubro de 1983. Dois anos depois, aos 33 anos, coordenou a equipe de engenheiros e físicos que desenvolveu o projeto do anel acelerador no Stanford Syncrontron Radiation Laboratory (SSRL), nos Estados Unidos, sob orientação de Helmut Wiedemann.

Nessa viagem também foi Liu Lin, que conheceu Ricardo em 1981, quando ela começou o curso de física na UFPR, onde ele era professor. Ricardo orientou Lin no mestrado e eles se casaram em 1986.

“Não tinha ninguém que sabia fazer isso aqui no Brasil e fomos lá aprender”, contou o próprio Ricardo Rodrigues em entrevista ao site O mundo da usinagem, em 2019. Quando o UVX começou a ser construído, em 1986, Ricardo Rodrigues já era conhecido como o “homem da máquina”, conta Marcelo Baumann Burgos no livro Ciência na Periferia: A Luz Síncrotron Brasileira. Um ano depois assumia a posição de chefe da Divisão de Projetos do então recém-criado Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS).

O projeto desenvolvido em Stanford, conhecido como Projeto 1, era mais moderno e arrojado do que foi possível construir. A partir de meados dos anos 1980, a falta de recursos, além de comprometer o cronograma do UVX, exigiu que a equipe liderada por Ricardo Rodrigues revisasse os parâmetros da máquina: o acelerador, inicialmente projetado para uma energia de 3 GeV, foi redesenhado para operar com 1,15 GeV.

O UVX foi inaugurado em 1997. Quatro anos depois, quando Cylon Gonçalves deixou a direção do LNLS, Ricardo Rodrigues demitiu-se. “Depois de 15 anos de trabalho intenso, estávamos todos exaustos, estressados”, lembra Cylon Gonçalves.

Voltou em 13 de agosto de 2009, atendendo a um convite de José Roque, que acabara de assumir a direção do LNLS com o compromisso de iniciar o projeto de construção de um novo síncrotron. O sim veio depois de um almoço de mais de duas horas. “Ele me perguntou se valeu a pena ter construído o primeiro síncrotron. Respondi que o UVX foi fundamental para o treinamento de pessoas para dar um salto mais competitivo com uma nova máquina. Além disso, era a chance de ele realizar o sonho de fazer um equipamento de fronteira”, afirma o diretor-geral do Cnpem.

Quando iniciou o projeto Sirius, Ricardo Rodrigues era, novamente, o homem certo, no lugar certo. O novo síncrotron, de quarta geração, foi concebido no estado da arte da tecnologia, comparando-se apenas ao Max IV, inaugurado em junho de 2016 na Suécia.

“O projeto inicial era fazer uma máquina de terceira geração e, então, o comitê avaliou que todos no mundo já estavam pensando em quarta. Em um mês, refizemos todo o projeto de óptica da máquina e mudamos a câmara de vácuo, que precisava ser de cobre. Foi um bom aquecimento. Hoje temos uma máquina melhor que a do Max IV”, disse Ricardo Rodrigues na entrevista ao site O mundo da Usinagem. Foi ele quem liderou a equipe do LNLS no redesenho da rede magnética para que o brilho de Sirius –de 0,28 nm.rad– fosse o mais intenso entre todos os síncrotrons em operação, lembra José Roque.

A nova máquina, que deverá iniciar a operação ainda este ano, possibilitará a realização de pesquisa competitiva, impossível de ser realizada hoje no Brasil com o síncrotron atual. As seis primeiras estações experimentais de pesquisa –nanoscopia de raios X, espalhamento coerente de raios X, micro e nanocristalografia macromolecular, por exemplo– foram selecionadas para atender tanto às novas demandas da ciência e da tecnologia, como para permitir o avanço de investigações em áreas estratégicas como óleo e gás, saúde, entre outras.

Em 2002, depois que deixou o LNLS, Ricardo Rodrigues decidiu empreender. Junto com Liu Lin e o técnico em eletrônica Carlos Scorzato, amigo desde os tempos da UFPR, montou a Skedio Tecnologia. “A nossa proposta era fazer instrumentação”, conta Scorzato. A empresa desenvolveu controles para a indústria da construção civil, desfibriladores cardíacos, dosadores, medidor de pressão industrial, entre outros. “A ideia era produzir coisas que não existiam”, resume.

A lista de inovações desenvolvidas pela Skedio incluiu um sistema de acionamento de uma instalação da artista plástica Tania Fraga para uma exposição no Instituto Itaú Cultural, em 2004, e em Adelaide, na Austrália, em 2007. A obra –na verdade um robô em formato de cubo com 1,20 m de face–, interagia com um computador para produzir movimentos ondulatório, semelhantes aos de uma arraia (veja o vídeo abaixo).

“Eu tinha participado de um workshop no Canadá e descobri que determinados nanomateriais como o nitinol, permitiam externalizar o virtual”, diz. Ela foi atrás de quem pudesse desenvolver sistema semelhante e encontrou a Skedio. “O Ricardo topou o desafio”, diz Fraga.

Scorzato explica tratar-se de um metal com “memória” que, quando aquecido, pode ser moldado para assumir uma determinada forma e, resfriado, volta à posição original – foi isso que conferiu movimento ondulatório ao robô projetado.

O sistema da Skedio era recoberto com uma membrana "estimulável", confeccionada em borracha natural produzida por comunidades da Amazônia. O usuário manipula a forma virtual usando uma tela sensível ao toque, que aciona o robô e ambos, o virtual e o material, se movem durante um minuto com os mesmos movimentos, num diálogo entre a ciência e a arte, ela explica. “O curador da exposição na Austrália ficou encantado”, ela diz.

Cylon Gonçalves acredita que, se Ricardo Rodrigues não tivesse sido cientista, teria sido artista. "Ele desenhava e pintava. Todo o talento que tinha para a ciência, também tinha para a arte".

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