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Maria João Ramos Pereira e Enrico Bernard

Morcegos e a Covid-19: vilões ou vítimas?

Sem estudo que prove conexão direta com pandemia, animais têm sido apontados como culpados por ela

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Maria João Ramos Pereira Enrico Bernard

​Desde o começo da pandemia de Covid-19 morcegos têm sido apontados como culpados, mesmo sem nenhum estudo categórico que mostre tal conexão direta.

Há consenso de que o vírus é de origem silvestre, não de laboratório, e de que houve um hospedeiro intermediário, mas desconhecido até o momento.

A busca por este hospedeiro começou com a comparação do genoma do Sars-CoV-2, vírus causador da pandemia, e de outros coronavírus conhecidos em morcegos na China. Mas a similaridade foi de 96%. Embora alta, 4% de diferença descartam morcegos como tal hospedeiro, e podem ainda apontar para múltiplos hospedeiros intermediários.

Mais: a diferenciação entre o vírus dos morcegos e aquele causador da Covid-19 deve ter ocorrido de 40 a 70 anos atrás. Morcegos estão sob os holofotes, pois desde a epidemia de Sars, em 2002, eles são mais estudados por causa de seu voo —que potencializaria a dispersão de patógenos— e de seu peculiar sistema imunológico.

Procurando bem, mais vírus foram encontrados neste grupo. Mas morcegos e roedores —"vilões" apontados em epidemias— não são nem mais, nem menos importantes como reservatórios do que outros animais.

A transmissão viral de animais silvestres para humanos é complexa, e ainda faltam “peças” para completar o quebra-cabeças da Covid-19. Infelizmente, detalhes das intrincadas e intrigantes relações entre patógenos, hospedeiros primários e intermediários, os mecanismos de transmissão e de mutações nem sempre chegam de maneira completa e correta ao público.

Na dúvida ou pressa por achar um "culpado" pela Covid-19, morcegos foram responsabilizados por algo em que não estiveram diretamente envolvidos. Isso é péssimo para um grupo que, infelizmente, já tem uma injusta má reputação.

Desde o início da pandemia, aumentaram os casos de vandalismo e destruição de abrigos e populações de morcegos no mundo, o que afetará as 1.421 espécies de morcegos conhecidas e os serviços valiosos que elas nos prestam.

Tais serviços incluem a polinização de centenas de espécies de plantas, muitas comerciais, além da dispersão de sementes e a regeneração de habitats, o controle de populações de insetos, incluindo pragas agrícolas e vetores de doenças para humanos e rebanhos.

Atacar morcegos é cientificamente um desserviço. Morcegos têm alta resistência a infecções virais, mas sem a resposta inflamatória típica em vários animais, incluindo humanos. Tal resposta combate a infecção, mas acima de certos níveis pode contribuir para a morte celular e o envelhecimento do organismo.

Essa capacidade natural de atenuar inflamações torna-os excelentes para, exatamente, entendermos como enfrentar infecções virais. Mecanismos gênicos e de autorreparo no DNA, únicos dos morcegos, também podem explicar uma característica ímpar: morcegos vivem muito mais do que animais de mesmo tamanho, o que os torna modelos em estudos para retardar o envelhecimento e tratar doenças da idade em humanos.

Mais além, morcegos têm baixa suscetibilidade a doenças cancerígenas, e a microflora oral de algumas espécies parece diminuir a susceptibilidade a cáries. Assim, morcegos devem ser vistos não como potenciais reservatórios de doenças, mas sim como fonte de informações muito úteis para nós.

Perigosas também são as visões alarmistas que apontam para o enorme risco que estaríamos correndo por convivermos com muitas espécies e seus vírus, bactérias e outros microrganismos. Deveríamos culpar nossa rica biodiversidade por contaminações ("spillovers") causados não pelos animais em si, mas pela ação humana e como interagimos com o meio natural? Obviamente que não.

Todos os animais —e humanos não são exceção— hospedam milhares de espécies de microrganismos, mas pouquíssimos têm potencial letal e menos ainda potencial letal pandêmico. O Brasil é um país megadiverso, com 182 espécies de morcegos, e recordista de espécies de primatas e aves, e está no topo para anfíbios, répteis, peixes e plantas. Atribuir uma relação causal direta do tipo "mais espécies, mais vírus, mais perigo" não é certo porque tal relação não necessariamente existe.

A contaminação por zoonoses é dinâmica e complexa, "spillovers" podem acontecer sem a presença direta dos animais e não necessariamente estão ligados com riqueza de biodiversidade. Quase sempre são frutos da ação humana e a perda de biodiversidade e de habitats naturais potencializa muito a disseminação de zoonoses.

Há ainda o chamado "efeito de diluição": na existência de várias espécies potenciais hospedeiras de um mesmo vírus, a taxa de encontro entre indivíduos infectados e indivíduos susceptíveis diminui, diminuem as taxas de transmissão e diminui também a densidade de indivíduos infectados nas diferentes populações. Recentemente foi proposto que um aumento da emergência de zoonoses em humanos pode exatamente ter relação com a extinção da megafauna de mamíferos no final do Quaternário.

A verdade é que o modelo de desenvolvimento que teimamos em seguir é a causa de desequilíbrios ambientais, está na origem da pandemia de Covid-19, e potencializará novas caso não alteremos a nossa ação sobre o planeta.

Culpar morcegos ou outros animais por "spillovers" para humanos é um desserviço. Útil será aproveitar este momento para nos conscientizarmos de que ações depredatórias sobre habitats e espécies têm consequências para a nossa sobrevivência como indivíduos, quiçá como espécie. Passou da hora de mudarmos a forma como interagimos com nosso planeta.

Fica a reflexão feita pelo conservacionista Thomas Lovejoy: “A natureza nos sustenta. É onde nos originamos. A lição para a humanidade dessa pandemia não é ter medo da natureza, mas restaurá-la, abraçá-la e entender como viver e se beneficiar dela".

"Toda essa biodiversidade é essencialmente uma gigantesca biblioteca de soluções, pré-testadas pela seleção e evolução naturais, para vários desafios biológicos", segue o biólogo americano. "A biologia idiossincrática dos morcegos, por exemplo —o fato de serem de alguma forma imunes ao coronavírus— pode contribuir para o desenvolvimento de um tratamento em humanos. A humanidade tem um enorme respeito pelas bibliotecas de nossas próprias obras; há todas as razões para tratar a biblioteca viva da natureza com o mesmo respeito e cuidado.”

Maria João Ramos Pereira

Membro da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros e do Laboratório de Evolução, Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos, do departamento de zoologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Enrico Bernard

É membro da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros e do Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade, do departamento de zoologia da Universidade Federal de Pernambuco

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