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Museus científicos viram bombas incendiárias nas mãos do sucateamento das instituições públicas

Praticamente todo o conhecimento gerado sobre riquezas naturais e históricas passam por um museu

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Hugo Fernandes-Ferreira

Professor da Universidade Estadual do Ceará e membro do Fórum de Sociedades Brasileiras de Zoologia

Fortaleza

Em 2010, vivemos o trágico exemplo do Instituto Butantan. Em 2018, choramos em desespero com o Museu Nacional. Agora, o Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais é a mais recente vítima de um incêndio que assolou parte do seu acervo, na segunda-feira (15). Não são casos isolados. Ainda que invisíveis à sociedade, há dezenas de outras bombas incendiárias como essas espalhadas pelo país e o disparador está na mão do sucateamento das instituições públicas.

O Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SIBBr), ligado ao ICMBio, possui 228 coleções cadastradas. Mesmo depois do incêndio no Museu Nacional, não há um levantamento sobre as condições estruturais de cada uma. Mas quem conhece bem sabe que a situação é de calamidade na maioria absoluta das instituições.

Prédio, visto de cima, destruído
Incêndio atinge parte do acervo do Museu de História Natural da UFMG, em Belo Horizonte - CBMMG/Divulgação

A maior parte dos prédios que abrigam as coleções científicas do país foi construída há décadas. Alguns são seculares, caso do Museu Paraense Emilio Goeldi. Instalações elétricas precárias e paredes com infiltração grave são o padrão comum a quase todos. Sistema anti-incêndio e sinalização de emergência, de tão raros, são considerados artigos de luxo, constata Sonia dos Santos, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Mesmo quem consegue financiamento para equipamentos de segurança amarga dificuldades para sua manutenção. Todos os anos, a bióloga Lucia Py-Daniel, do Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas, não sabe se conseguirá manter o sistema de climatização e de alarme da coleção de peixes.

Nesses locais, nós cientistas somos rodeados por milhares de litros de álcool, formol e outros componentes altamente inflamáveis, dispostos em estantes de metal e madeira. Vivemos todos os dias na receita do desastre. Quem trabalha nesses locais exerce atividade de alto risco, mas ninguém recebe um real a mais por isso. Considerando os cortes nas bolsas de diversos alunos de graduação e pós-graduação, há quem já não receba de jeito nenhum.

A curadoria das coleções deveria ser um cargo técnico exclusivo, mas muitas vezes é exercida pelo professor. Além de aulas, administração de projetos, participação em bancas, produção de artigos, orientações e reuniões, o docente precisa cuidar de tarefas que variam desde a exaustiva catalogação de espécimes à troca de álcool das vidrarias, como revela Mercia Barcellos da Costa, que coordena a Coleção de Moluscos da Universidade Federal do Espírito Santo e ainda enfrenta o drama de não ter nenhuma previsão de concurso público para a sucessão de seu cargo após a aposentadoria.

Fagner Delfim, da Universidade Federal da Paraíba, é um dos raros casos de técnicos concursados exclusivamente para cuidar de uma coleção científica. O prédio onde trabalha, a despeito de ter sido inaugurado em 2015, não conta com sistema anti-incêndio. O teto, já com graves problemas de vazamento hídrico, é forrado com PVC, material inflamável.

Todos os anos, professores e curadores clamam por migalhas aos órgãos de financiamento. Esse descaso tem um preço caro. No país com uma das maiores biodiversidades do mundo, praticamente todo o conhecimento gerado sobre nossas riquezas naturais e históricas passam direta ou indiretamente por um museu científico. Fazendo doer na carne, esse conhecimento, por exemplo, inclui pesquisas com zoonoses, motivo pelo qual estamos sofrendo as dores da maior pandemia do século.

Para além das irreparáveis perdas materiais, a situação dos museus científicos brasileiros pode reservar um cenário ainda pior. O incêndio no Butantan ocorreu num sábado. O do Museu Nacional, num domingo. O da UFMG, nas primeiras horas de segunda. Os dias e horários podem ter sido determinantes para que as tragédias não envolvessem vidas humanas, mas nós literalmente estamos brincando com fogo.

Nós estamos avisando, em desespero, há mais de dez anos. Todos esses desastres foram anunciados. Nós não queremos mais prever o que virá. Ninguém aguenta mais.

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