Nova classificação de seres vivos com base apenas no parentesco é, enfim, publicada

Após décadas de elaboração, novo código abole grupos hierárquicos com estrutura definida, como filo, e considera apenas história evolutiva

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São Carlos (SP)

Uma tentativa ambiciosa de alterar a lógica da classificação dos seres vivos acaba de ser publicada oficialmente, ocupando cerca de 1.500 páginas em dois volumes, depois de décadas de preparativos. O objetivo dos criadores da proposta é basear todo o processo classificatório nos parâmetros da teoria da evolução, levando em conta apenas o parentesco entre os organismos.

Conhecido como PhyloCode, o novo código de nomenclatura deixa de lado a obrigatoriedade de encaixar toda e qualquer espécie na hierarquia pré-definida de grupos que muita gente ainda decora na escola: filos, classes, famílias etc. No lugar disso, existem apenas duas unidades fundamentais: espécie (como a humana, Homo sapiens) e clado (do grego “kládos”, ou “galho”).

Macacos-prego-do-peito-amarelo no zoológico de São Paulo
Macacos-prego-do-peito-amarelo no zoológico de São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Os clados podem ser mais ou menos abrangentes, dependendo do grupo de animais, plantas ou outras criaturas que se queira designar, mas o fundamental é que ele seja sempre formado por espécies que sejam consideradas descendentes do mesmo ancestral comum, sem deixar nenhuma espécie de fora. É o que os biólogos costumam chamar de grupo monofilético (algo como “membros de uma única tribo”, em grego).

O PhyloCode, ou Código Internacional de Nomenclatura Filogenética, chega à sua fase oficial pelas mãos de seus dois principais criadores e defensores, o zoólogo Kevin de Queiroz, do Museu Nacional de História Natural dos EUA, e Philip Cantino, da Universidade de Ohio.

O volume que estabelece as regras para estabelecer e batizar clados está saindo junto com outro, bem mais parrudo, com o título de “Phylonyms: A Companion to the PhyloCode” (“Filônimos: Um Acompanhamento do PhyloCode”), organizado também por outro defensor de primeira hora da proposta, Jacques Gauthier, da Universidade Yale. Em “Phylonyms”, os três reuniram artigos de quase 200 especialistas para mostrar, na prática, como fica a classificação de uma ampla variedade de seres vivos, de fungos a primatas, usando o PhyloCode.

Nesse volume, o paleontólogo brasileiro Max Cardoso Langer, especialista nos primórdios da evolução dos dinossauros, está entre os que assinam os verbetes Dinosauria (sobre os dinossauros como um todo), Saurischia (que engloba dinos carnívoros, como o célebre T. rex, e pescoçudos quadrúpedes herbívoros, como o Brontosaurus) e Sauropodomorpha (apenas os pescoçudos e seus ancestrais e parentes imediatos).

“Foram mais de dez anos para chegar a esse livro, um processo muito complexo”, conta Langer. “Não é fácil de juntar todo mundo, a banda da botânica, a banda da zoologia e colocar esse pessoal todo para escrever”, diz ele, que foi convidado para participar do projeto pelo paleontólogo argentino Fernando Novas ainda em 2009.

Kevin de Queiroz contou à Folha que o código propriamente dito está pronto para publicação, de certa maneira, desde 2013. No entanto, explica ele, a intenção sempre foi publicá-lo junto com o “Phylonyms”, que deu muito trabalho para ser editado e revisado ao longo dos anos. Além disso, era preciso criar uma base online de dados para registrar os nomes e as definições dos clados, que acabou sendo batizada de RegNum (https://www.phyloregnum.org).

“Como todo código de leis que é criado, ele é mais complexo do que parece no início”, compara Langer. “O conceito por trás do PhyloCode parece simples, e de fato é simples, mas você começa a perceber que cada palavra usada tem uma consequência.” Além disso, o fato de os três coordenadores do trabalho terem concentrado demais as decisões editoriais também teve impacto na demora da publicação, segundo o paleontólogo.

As principais diferenças conceituais entre a nomenclatura biológica tradicional e a filogenética têm a ver com a visão hierárquica das classificações mais antigas, de um lado, e com os dados usados para defini-las, de outro.

A necessidade de colocar diferentes tipos de seres vivos em “caixinhas” equivalentes tende a criar certas artificialidades. Basta pensar nas chamadas ordens, agrupamentos relativamente amplos de espécies. Entre mamíferos, por exemplo, a ordem dos roedores tem mais de 2.000 espécies, sendo a mais diversificada. Já entre insetos, a ordem dos lepidópteros (a das borboletas) abrange 150 mil espécies. Isso significa que, do ponto de vista evolutivo, elas não são comparáveis. Os processos que levaram ao surgimento e à diversificação das borboletas são bem diferentes dos que geraram os roedores atuais, embora formalmente correspondam ao mesmo tipo de “caixinha” classificatória.

Outro problema é quando novas descobertas mudam consideravelmente essas classificações. Os cupins, até pouco tempo atrás, eram classificados na ordem dos isópteros. Descobriu-se, porém, que na verdade eles são um subgrupo da ordem das baratas. Assim, foram “rebaixados” para o nível de família, mas esse rebaixamento exige também uma mudança no nome do grupo, numa espécie de efeito-dominó que pode bagunçar a cabeça até para os biólogos mais aplicados.

O PhyloCode elimina a obrigatoriedade de usar os grupos hierárquicos e a necessidade de mudança de nomes caso se descubra que a relação entre certos grupos não era bem a que se imaginava, como no caso dos cupins e baratas. Além disso, o principal sistema para se definir um clado no novo código é demarcar a ascendência comum de seus membros, como no exemplo dos dinossauros no infográfico.

Ou seja, pertencem ao clado Dinosauria os descendentes do ancestral comum mais recente de todos os tipos de dinos. Além disso, em vez de usar apenas certas características anatômicas do grupo para definir o pertencimento a ele (digamos, mamíferos são todos os animais com glândulas mamárias), a referência é uma filogenia, ou seja, uma árvore genealógica evolutiva unindo aquelas espécies e baseada em todas informações disponíveis (anatomia atual, fósseis, DNA etc.) sobre aquele clado. Os nomes antigos não serão jogados fora, e os novos continuarão a ser estabelecidos usando os sistemas atuais nas áreas de zoologia e botânica; o que muda é a lógica por trás das definições.

Resta saber, é claro, em que medida o novo código será influente e ganhará aceitação com o passar do tempo. Na década passada, quando ganhou notoriedade pela primeira vez (este repórter escreveu um artigo sobre o tema em 2002 para o extinto caderno Mais!, da Folha), o PhyloCode atraiu tanto defensores quanto muitos críticos.

“Metade da comunidade estava torcendo o nariz. Com a demora da publicação, muita gente pensou que as ideias tinham desaparecido. Por outro lado, em áreas como a paleontologia de vertebrados, a botânica e a herpetologia [que estuda répteis e anfíbios], ninguém questiona a lógica da nomenclatura filogenética. Já entre quem trabalha com peixes e insetos, pouca gente comprou a ideia. Imagino que agora os debates e as críticas devam voltar com força”, diz Langer.

“Pessoalmente, não tenho um perfil muito evangelista”, diz De Queiroz. “Em geral, prefiro publicar ideias e ter esperança de que as pessoas achem que elas são boas e decidam adotá-las. Entretanto, nesse caso, acho que pode ser importante ter um papel mais ativo. Estou tentando encorajar alguns de meus colegas que trabalham com clados não representados no volume ‘Phylonyms’ a estabelecer nomes para esses clados seguindo o PhyloCode.”

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