Falhas no cérebro ajudaram a moldar compreensão sobre o órgão

'No Labirinto do Cérebro', do neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho, explora órgão pedaço por pedaço

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São Carlos

O cérebro humano, provavelmente a estrutura mais complicada do Universo conhecido, foi ficando menos misterioso conforme cientistas e médicos iam compreendendo como e por que ele “quebrava”. É desse nexo irônico entre as falhas do órgão e nossa compreensão acerca dele que trata o livro “No Labirinto do Cérebro”, do neurocirurgião carioca Paulo Niemeyer Filho.

A abordagem já produziu algumas obras clássicas voltadas para o público em geral, como as que transformaram o médico britânico Oliver Sacks (1933-2015) em best-seller e foram até adaptadas para o cinema. O autor brasileiro talvez não tenha erudição e traquejo literário comparáveis aos de Sacks, mas é difícil não ficar cativado pela maneira como ele explora, pedaço por pedaço, a complexidade do cérebro e o que pode dar errado com ela.

Quando digo “pedaço por pedaço”, não se trata de mera força de expressão. O neurocirurgião e professor da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio) optou por estruturar seus capítulos a partir das diferentes estruturas anatômicas do cérebro, tanto as de grande porte (como os lobos frontais, na testa) quanto determinados tipos de neurônio.

Em geral, ele combina de forma simples e eficiente uma explicação rápida sobre o funcionamento dessas regiões e relatos de casos, muitos dos quais presenciados pessoalmente pelo autor, sobre pacientes que enfrentaram problemas nelas.

As histórias individuais podem ser curiosas, surreais ou tocantes, ao mesmo tempo em que iluminam os aspectos contraintuitivos do funcionamento cerebral —a especialização de certas áreas misturada com a surpreendente plasticidade (versatilidade) do órgão como um todo quando partes dele se perdem.

Niemeyer Filho quase invariavelmente acerta em cheio quando esboça pequenas cenas de contato com pacientes e colegas, seja no consultório, seja no ambiente tenso do centro cirúrgico.

Médico com as mãos no bolso olha para o lado. Parte da foto é embaçada
O neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho - Gustavo Lacerda/Folhapress

Com vivacidade e clareza, sem qualquer firula ou enchimento narrativo, ele é capaz de transportar o leitor para dentro do que está acontecendo e transmitir a mesma sensação de urgência que, imagina-se, está presente em que segura o bisturi. Veja como ele conta o caso de um rapaz que sofrera traumatismo craniano ao cair de skate:

“Voei de volta ao hospital e me deparei com ele ainda na sala de emergência, mas agora em coma profundo, entubado, respirando com auxílio de aparelho e já com anisocoria, que significa uma pupila dilatada e a outra normal. Prenúncio de morte iminente (...) Sem qualquer anestésico, o que não fez a menor diferença já que estava em coma, sem cortar seu cabelo ou sequer lavar sua cabeça, iniciei a cirurgia (...) Retirei os enormes coágulos e o cérebro voltou a pulsar.” Ufa.

Tal como os melhores exemplos desse tipo de literatura, o livro deixa claro como o cérebro, longe de ser uma mera “esponja” que apenas absorve os estímulos do mundo lá fora, é um sistema que atua mais como um simulador de realidade virtual, criando modelos do mundo —que podem ficar estranhamente desconjuntados em determinadas situações.

A trajetória do texto, ainda que enriquecedora e até viciante, como se pode ver pela amostra acima, não está livre de certos deslizes. O mais importante deles está no início da obra, quando Niemeyer Filho se propõe a falar da trajetória evolutiva que levou à formação do cérebro humano e acaba repetindo alguns chavões com odor de naftalina.

“O homem tornou-se o único animal que tem ciência de si próprio” e assim conseguiu “vencer a seleção natural”; “os animais foram ascendendo na escala filogenética”, diz o texto. Quanto à primeira afirmação, basta dizer que numerosos estudos sobre a capacidade que grandes símios, golfinhos, elefantes e até corvos têm de se reconhecer no espelho —e, portanto, de terem “ciência de si próprios” parecem ter sido ignorados.

No caso das outras duas frases, traça-se um retrato da teoria da evolução contaminado pelo que se costuma chamar de finalismo —a ideia de que as características dos seres vivos correspondem a um plano implícito de perfeição crescente.

Diante de um órgão tão intrincado quanto o cérebro, é compreensível que essa ilusão pareça particularmente poderosa, mas o fato de que se trata apenas de uma ilusão deveria ficar claro a partir das próprias panes, curiosas ou catastróficas, que o neurocirurgião tem tentado resolver ao longo de suas décadas de carreira. Como se vê, todo mundo tem seus pontos cegos.

No Labirinto do Cérebro

  • Preço R$ 59,90 (ebook: R$ 29,90); 264 págs.
  • Autor Paulo Niemeyer Filho
  • Editora Objetiva
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