Cientista vai investigar 'bioma' das casas dos paulistanos

Ecólogo recebe R$ 570 mil para estudo sobre diversidade de aranhas, formigas e outros animais em SP

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São Carlos (SP)

Para o ecólogo Raul Costa Pereira, da Unicamp, chamar São Paulo de selva de pedra não é só força de expressão. Acostumado a fazer trabalho de campo em ecossistemas exuberantes, como o Pantanal, Pereira está se preparando para explorar a biodiversidade que se esconde nas casas paulistanas —dentro de um vaso de flor, no canto da sala ou nas rachaduras de um azulejo.

“A gente normalmente usa binóculo e calça de campo para estudar relações ecológicas. Eu quero ver o que é possível fazer de pijama e meia dentro de casa”, brincou o pesquisador em conversa com a Folha.

A ideia receberá um investimento de R$ 570 mil do Instituto Serrapilheira, órgão privado sem fins lucrativos que financia cientistas brasileiros com projetos inovadores. Embora já existam alguns levantamentos sobre a fauna de aves e outros animais de maior porte que podem ser encontrados em parques, praças e demais áreas das metrópoles brasileiras, o trabalho do ecólogo tem objetivos um pouco diferentes: flagrar formas diminutas, mas ainda assim importantíssimas, de biodiversidade.

Moradora mostra opiliões (tipo de aracnídeos) encontrados em casa em Osasco, na Grande São Paulo
Moradora mostra opiliões (tipo de aracnídeos) encontrados em casa em Osasco, na Grande São Paulo - Martha Salomão - 21.jan.20/Folhapress

“Vamos olhar mais para o micro, basicamente para os artrópodes”, explica, referindo-se ao grupo mais diversificado dos invertebrados, que inclui formigas, aranhas, besouros, ácaros e uma infinidade de outras criaturas. O “micro” da análise inclui também a delimitação espacial: Pereira quer investigar como os hábitos de cada residência influenciam a presença de diferentes espécies nela.

“Eu tenho um interesse pelo que se pode chamar de ecologia de indivíduos”, conta ele. “A gente tem uma tendência a colocar vários indivíduos de uma mesma espécie, como um tipo de peixe ou ave, numa mesma caixinha. Mas, quando a gente olha para nós, humanos, a individualidade fica escancarada, e eu acho que é possível saber como isso reverbera e se torna uma força motriz para a diversidade desses microecossistemas que são naturalmente dependentes da gente.”

É possível pensar, por exemplo, no interior de uma casa como um habitat que abriga uma cadeia trófica em miniatura, incluindo pequenos herbívoros, como certas formigas, e os predadores que se alimentam delas (aranhas, digamos), e assim por diante. Detalhes como a presença de plantas, pequenas áreas com canteiros ou gramados, o tipo de pavimento da casa, iluminação, ventilação etc. são capazes de influenciar quais espécies vão formas essas cadeias.

Mas outra variável importante são os hábitos dos humanos de cada casa, aponta ele. “Será que a gente vai ter as mesmas espécies na casa de quem é vegano, de quem só come comida processada e de quem faz praticamente todas as refeições fora de casa? Como nós somos as espécies-chave desses ambientes, tudo isso vai fazer diferença.”

Muitos dos nossos animais que o pesquisador pretende estudar são difíceis de enxergar, seja pelo tamanho, seja pelo costume de frequentar cantinhos pouco acessíveis às mãos e ao olhar humanos. Para contornar esse problema de detecção, o projeto adotará técnicas de genômica ambiental. Isso significa que até o pó acumulado num tapete poderá passar por uma análise de DNA capaz de flagrar as espécies que passaram por ali, mesmo que restos maiores e mais visíveis delas já tenham sumido.

Outra ferramenta importante serão os isótopos estáveis —variantes de átomos como o carbono, que aparece em todas as moléculas orgânicas, que ajudam a estimar a origem dos alimentos que determinado animal consome. A ideia é investigar, por exemplo, o que aconteceu em lugares onde os invertebrados dependiam da constante presença de alimentos descartados por humanos para comer —até ficarem sem esse “self-service” com a chegada do distanciamento social ocasionado pela pandemia de Covid-19. É o caso da própria Unicamp, onde o pesquisador normalmente trabalha.

Além disso, a ideia é fazer uma amostragem das casas paulistanas que leva em conta as diversidades regionais e socioeconômicas da cidade —bairros mais arborizados ou só com asfalto e concreto, periferia e centro, e assim por diante. Vai ser possível cruzar esses dados geográficos com os levantamentos sobre os artrópodes para entender como uma coisa influencia a outra.

Alguém mais cético poderia achar que dificilmente coisas mais interessantes do que simples formigas e baratas vão aparecer num levantamento como esse. Pereira discorda. “O primeiro passo é desbravar, jogar a tarrafa e ver o que vem”, compara ele, usando uma analogia de pescador. “Eu acho que podem vir surpresas boas e ruins, inclusive a presença de algumas espécies que em tese só apareceriam em locais bem preservados.”​

Erramos: o texto foi alterado

A versão original da foto que ilustra este texto dizia na legenda, erroneamente, que a moradora mostrava aranhas, e não opiliões, encontradas em sua casa. A legenda foi corrigida.

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