Descrição de chapéu Livros

Primatólogo demonstra a arte de transformar ciência em risos, lágrimas e compreensão

'Comporte-se', de Robert Sapolsky, resume o que se sabe sobre biologia comportamental dos humanos

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São Carlos (SP)

Comporte-se: a biologia humana em nosso melhor e pior

  • Preço R$ 49,90 (ebook)
  • Autor Robert Sapolsky
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Giovane Salimena e Vanessa Barbara

Se cientistas com talento literário e narrativo são relativamente raros, os que conseguem usar esse talento de maneira a produzir livros que são hilários e comoventes em igual medida contam-se nos dedos de uma única mão. O primatólogo e neurobiólogo americano Robert Sapolsky faz parte desse seletíssimo grupo, e “Comporte-se”, sua obra mais recente, mostra seu domínio da arte de transformar ciência de ponta em matéria-prima para risos, lágrimas e uma compreensão mais profunda do que significa ser humano.

“Comporte-se”, um catatau de mais de 800 páginas que chega agora ao Brasil quatro anos após o lançamento original do livro em língua inglesa, tem como objetivo resumir boa parte do que se sabe sobre a biologia comportamental da nossa espécie. O foco, como diz o subtítulo, são os aspectos biológicos “do nosso melhor e pior” –vale dizer, tanto os assassinatos, genocídios e preconceitos que caracterizam o Homo sapiens quanto os atos de cooperação, gentileza e altruísmo que vemos o tempo todo entre os seres humanos.

O professor e neurocientista americano Robert M. Sapolsky - Lisa Sapolsky - 18.abr.2001/The New York Times

O problema da nossa espécie, observa Sapolsky, é que essas duas facetas estão interligadas das mais diversas maneiras. É justamente o altruísmo e a cooperação dentro dos diferentes grupos humanos —dos bandos minúsculos de caçadores-coletores aos Estados com milhões de cidadãos do mundo moderno— que permite o emprego da discriminação e da guerra contra quem está fora desses grupos. É comum as pessoas dizerem que não gostam de violência —mas, em geral, essa objeção se refere apenas ao tipo “errado” de pancadaria. Quando a violência é do tipo “certo”, contra quem “merece”, é comum que muita gente a adore, diz ele.

Professor da prestigiosa Universidade Stanford, na Califórnia, Sapolsky já passou várias temporadas estudando o comportamento de uma comunidade de babuínos na África Oriental (esse é o lado primatológico de seu currículo, descrito de forma tocante no livro “Memórias de Um Primata”). Em vez de apenas documentar as intrigas maquiavélicas que caracterizam a sociedade surpreendentemente complexa dos bichos, porém, o pesquisador também usa amostras de sangue e outros tecidos dos babuínos para documentar como seus hormônios e outras moléculas influenciam o comportamento e o status dos macacos —e vice-versa.

Essa vida dupla científica é um dos grandes trunfos do livro, porque confere a Sapolsky a disciplina intelectual para enxergar o comportamento dos seres humanos (primatas de grande porte de origem africana, sempre é bom lembrar) por múltiplos ângulos explicativos.

Psicologia social e comportamental, neurociência, endocrinologia, genômica, antropologia e arqueologia, entre outros ramos do conhecimento, trazem insights importantes para entender por que fazemos o que fazemos, e é a complexidade da interação entre esses fatores que explica a estranha dupla personalidade da espécie humana em seu melhor e pior. Nada é mais enganoso do que apontar um único gene, hormônio ou pedaço do cérebro como responsável por comportamentos complexos, diz ele.

“Em vez de causas, a biologia muitas vezes envolve propensões, potenciais, vulnerabilidades, predisposições, inclinações, interações, modulações, contingências, condições se/então, relações contextuais e amplificações ou diminuições de tendências preexistentes. Círculos e laços e espirais e fitas de Möbius. Ninguém disse que era fácil. Mas o assunto é importante”, escreve Sapolsky.

E isso não exclui em momento algum a cultura —um produto da biologia humana que, se não a transcende exatamente, é capaz de evoluir em paralelo e afetar de maneiras surpreendentes a própria biologia que a gerou. O autor discute esse processo em um de seus exemplos mais iluminadores e divertidos, sobre as diferenças hormonais detectadas entre homens dos estados do Norte e do Sul dos EUA.

Experimentos engenhosos mostraram que nortistas e sulistas produzem hormônios do estresse de maneiras bem diferentes quando são submetidos a ofensas (um esbarrão e um palavrão). Enquanto nativos do Norte (Boston ou Nova York, digamos) não costumam produzir mais hormônios do estresse do que o normal numa situação dessas, os níveis de quem cresceu no Sul americano (na Virgínia ou no Alabama, por exemplo) disparam no mesmo contexto. A possível explicação cultural: o Sul foi colonizado majoritariamente por imigrantes da Escócia e da Irlanda de regiões pastoris, acostumados a enfrentar ladrões de gado e a resolver suas diferenças na base da faca.

Histórias saborosas sobre essas interações entre múltiplos fatores estão por toda parte, em geral contadas com um senso de humor nerd ao qual é difícil resistir. Muitas são, mais uma vez, paradoxais, como as evidências de que a testosterona, o suposto hormônio “machão”, na verdade tem um papel muito mais complicado na gênese da violência, ou as de que a oxitocina, dita “molécula da empatia”, pode acabar sendo um facilitador do tribalismo, do tipo “para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei”.

Um autoproclamado pessimista por natureza, Sapolsky vê com certa desconfiança algumas afirmações triunfalistas sobre a diminuição das tendências violentas humanas ao longo dos últimos séculos. Depois de colocar tudo na balança, mesmo assim, ele vê boas razões para sermos cautelosamente otimistas. “À medida que eu aprendia mais sobre o assunto deste livro, surgia uma clareza inesperada: de que as esferas de ação dos seres humanos que machucam uns aos outros não são nem universais nem inevitáveis, e de que estamos obtendo alguns insights científicos de como evitá-las”, escreve ele. Eis uma mensagem que nunca é demais repetir.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior cotou o livro como 4 estrelas por falha de edição. A avaliação foi corrigida.

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