Novo livro busca as origens da violência humana

Homo Ferox encontra na biologia evolutiva, na psicologia e na cultura explicações para a brutalidade da nossa espécie

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Edison Veiga
Bled (Eslovênia)

Não dá para fugir do fato: o ser humano é um bicho que mata. Não só outros animais, justificado pela necessidade básica da alimentação. Ele mata outros seres humanos. Desde sempre. Por muitas razões.

Porque disputa a mesma parceira sexual, porque quer dominar o mesmo território, porque simplesmente não suporta o comportamento diferente do outro.

Mas há um marco fundador dessa violência? Achados arqueológicos apontam para 10 mil anos atrás, às margens do lago Turkana, entre os atuais Quênia e Etiópia.

Ali foram encontrados restos mortais em posições indicadoras de uma atrocidade que resultou em pelo menos dez mortes, inclusive a de uma mulher grávida. Evidências mostram que as vítimas foram amarradas antes de executadas, com uma arma feita com obsidiana, um vidro vulcânico.

Esqueleto com múltiplas lesões na região do lago Turkana, no Quênia, indício de massacre há 10 mil anos
Esqueleto com múltiplas lesões na região do lago Turkana, no Quênia, indício de massacre há 10 mil anos - Reuters - 20.jan.2016

Para o jornalista Reinaldo José Lopes, que se debruçou nos últimos três anos sobre o tema da crueldade perpetrada pelo Homo sapiens para escrever o recém-lançado “Homo Ferox: As Origens da Violência Humana e o que Fazer para Derrotá-la” (editora HarperCollins), essa fotografia preservada pela natureza retrata algo que sempre ocorreu, desde o advento da espécie.

Com variações cronológicas, é verdade. “Houve um crescimento da violência ao longo do tempo, com um ‘meio do caminho’ muito violento. Mas uma queda vertiginosa a partir da organização dos Estados”, explica ele, que é colunista da Folha.

Se entre os primeiros grupos de humanos, os tais caçadores-coletores, os homicídios não eram tão recorrentes, a partir do ponto em que a agricultura foi dominada e as pessoas assumiram a posse de territórios, essas disputas começaram a aumentar.

Pois então passou a haver por que brigar, afinal. Terra, poder, controle social. As primeiras civilizações foram criadas, e o efeito colateral foi o aumento exponencial da violência.

No livro, Lopes mergulha em explicações biológicas, psicológicas, históricas e culturais para traçar esse panorama.

“Não é muito certo pensar em termos evolutivos lineares. O grande tema é esse paradoxo em vários níveis”, comenta ele.

Afinal, se a criação do Estado moderno, com suas instituições e as relações normatizadas entre pessoas e países, funciona como um anteparo social que, em tese, deve zelar para que crimes não aconteçam, é também essa estrutura toda que permite a ocorrência de guerras cada vez mais letais —e nem precisamos pensar nas possibilidades de armamentos deste milênio, já que carnificinas históricas foram vistas das conquistas napoleônicas às duas grandes guerras mundiais do século 20.

Porém, tratando esses momentos bélicos como exceção, a sociedade contemporânea tende a ser menos violenta —fruto dessa invenção cultural que é a própria civilização, com seus instrumentos jurídicos e princípios éticos e morais.

No dia a dia, a maior parte das mortes é resultado das chamadas desinteligências, como qualquer policial do departamento de homicídios de uma grande cidade está cansado de saber. São as brigas por causa de futebol ou mesmo porque um está querendo a mulher do outro.

Sim, na maior parte, são desavenças masculinas. No livro, Lopes explica bem que isso é um reflexo do que se chama de má adaptação, uma característica evolutiva que acaba tendo efeitos nocivos no cotidiano.

Antigamente o Homo sapiens disputava para perpetuar seus genes. E, biologicamente, o homem tem a capacidade de gerar muito mais descendentes do que a mulher. Então essas disputas pela procriação ocorriam com frequência —era um tempo em que ninguém pensava em perguntar para a donzela se ela queria ser rifada entre dois agressivos competidores.

“Eu costumo dizer que o problema do mundo é o homem, e isso é das coisas mais centrais”, afirma o jornalista.

“A gente evoluiu para essa competição entre membros do sexo masculino, por prestígio, por posição, por bens e, em última instância, uma disputa por acesso sexual. Isso moldou a psicologia humana da violência.”

Contudo, conforme Lopes enfatiza, isso hoje “é uma mentira”. A monogamia está instituída por sistemas legais, há métodos anticoncepcionais, ninguém parece estar disputando quem vai ter a maior prole.

“Um homem com mais filhos hoje não vai ter mais poder político. Se bem que, no caso do Bolsonaro, a gente fica um pouco em dúvida”, comenta Lopes.

“Mas os incentivos psicológicos, hormonais e biológicos que foram instalados no nosso ‘software’ para seguir esse caminho ainda estão lá. É a má adaptação que se instaurou e essas coisas continuam acontecendo”, reflete.

Outro aspecto residual é o chamado tribalismo, a tendência de nos unirmos em grupos com nossos semelhantes. Como a sociedade abarca esses diversos grupos, os ingredientes para conflitos estão à mesa.

Essa divisão entre nós e eles já foi útil em um passado remoto. Questão de sobrevivência. Hoje, porém, só serve como pólvora para briga no almoço de domingo — e alimenta ímpetos de chegar às vias de fato.

“Quando não havia arbitragem estatal eficaz para conflitos, isso era preciso de alguma maneira. Hoje há mecanismos muito mais eficazes do que partir para a justiça com as próprias mãos, mas o instituto continua lá [no cérebro] e, para domar esse negócio é preciso muito esforço, educação, sistemas políticos e de Estado funcionando”, argumenta.

É por isso que, como já comprovado por diversos estudos científicos comparativos entre sociedades com legislação mais ou menos permissiva, a liberação de armas não é uma boa ideia.

“As desinteligências são a principal causa de violência letal e isso é um dos motivos pelos quais a ideia de armar a população é uma idiotice total completa”, afirma Lopes.

Em termos estatísticos, prossegue o autor, se não é possível alterar a programação que faz do ser humano alguém propenso a cometer certas imbecilidades, o melhor é diminuir o acessos a ferramentas que o ajudem nisso.

“Há uma constante. Mas podemos girar o botão de intensidade dela de maneiras significativas, dependendo de como a sociedade está funcionando naquele momento”, explica.

A boa notícia é que, “Homo Ferox” demonstra isso, o mundo está menos violento hoje.

Uma explicação é econômica. Antigamente as guerras valiam mais a pena: a organização financeira do planeta garantia mais poder a quem detivesse o controle de regiões onde ouro fosse extraído, por exemplo.

“Confrontos militares significavam mais recursos, mais escravos, mais riquezas. Eram guerras produtivas”, descreve. “Valia a pena do ponto de vista econômico fazer guerra.”

Hoje a conta parece não fechar. E talvez não seja à toa que o presidente americano Joe Biden tenha retirado suas tropas do Afeganistão e declarado que não pretende meter o bedelho na questão dos talibãs.

“Consegue-se com muito menos dor de cabeça se tornar uma potência criando um Vale do Silício em seu país do que ocupando territórios novos, extraindo o monopólio de ouro ou de ferro”, compara.

“Pela maneira como a economia mundial está estruturada hoje, o fator do bolso é o mais alentador, a longo prazo. Dá uma esperança.”

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