Cadáver doado para ciência acaba dissecado em evento com ingresso de US$ 500

Caso aconteceu nos EUA; família não sabia que corpo seria usado em evento com fins comerciais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Christine Hauser
The New York Times

O vídeo desfocado mostrava um cadáver deitado sobre uma mesa no salão de festas de um hotel. Um homem debruçado sobre o cadáver falava para uma plateia que pagara para assistir à dissecação do corpo. Algumas pessoas vestiram luvas e foram olhar o cadáver de perto e tocá-lo.

Era o corpo de David Saunders, homem de 98 anos do estado americano da Lousiana que morreu de Covid-19 em agosto. Segundo sua esposa, não foi isso que ela pretendia quando doou seu corpo para pesquisas médicas.

"Minha impressão foi que seria estritamente para fins de ciência médica, e não que o corpo dele seria exposto", disse Elise Saunders, a viúva de David. Descrevendo o evento como "mórbido", disse que tomou conhecimento dele por relatos da mídia e que estava tentando se refazer do choque.

Imagem em primeiro plano mostra homem de máscara, luvas e avental médico ao lado de uma maca. Ao funso, pessoas estão sentadas em uma plateia o observando.
Vídeo divulgado pela rede de televisão King 5 News, de Seattle (EUA), mostra imagens de uma dissecação de cadáver que teria sido feita para um público pagante em um hotel de Portland, no Oregon - Reprodução/King 5 News

A dissecação foi noticiada na semana passada pela estação de TV King 5 News, de Seattle, segundo a qual um jornalista assistiu ao evento. A emissora pôs no ar imagens filmadas no hotel em Portland, Oregon, e disse que os presentes pagaram até US$ 500 (R$ 2.700) cada para assistir à dissecação.

"Quinhentos dólares por cabeça para as pessoas assistirem —isso não é ciência", disse Elsie Saunders.

O cadáver de seu marido foi intencionalmente borrado na foto, mas em dado momento pareceu que o homem que comandava a dissecação estava segurando partes do corpo nas mãos e as dispondo sobre uma superfície.

Uma página no Showpass divulgou o evento, realizado em 17 de outubro, como uma aula de "laboratório de cadáveres" "levada até você" por uma empresa chamada Death Science (ciência da morte) e uma segunda organização, a Oddities and Curiosities Expo (exposição de bizarrices e curiosidades).

Kyle Miller, que até a quinta-feira (4) era representante da Death Science, disse em email na quarta-feira (3) que a empresa vendeu ingressos para o público geral. Setenta pessoas compareceram a um suposto workshop onde "os participantes puderam observar uma dissecação anatômica de um cadáver humano completo", ele disse.

O fundador da Death Science, Jeremy Ciliberto, disse que seu objetivo foi "criar uma experiência educativa para indivíduos interessados em aprender mais sobre a anatomia humana".

"Compreendemos que o evento tenha causado aflição indevida à família e pedimos desculpas por isso", falou.

O tenente Nathan Sheppard, porta-voz da polícia de Portland, disse que detetives consultaram o Departamento de Justiça do Oregon e a promotoria pública do condado de Multnomah. Esta teria concluído, que, embora a dissecação possa ter violado leis cíveis, não há "leis criminais que se apliquem diretamente a tais circunstâncias".

O Departamento de Saúde do Oregon não respondeu a pedidos de comentários. Kimberly DiLeo, a médica legista chefe do condado de Multnomah, disse que o cérebro e os órgãos foram removidos durante o que descreveu como um "evento pay-per-view público".

"Foi absolutamente imoral e antiético", ela disse, acrescentando que as autoridades do condado estão investigando se o evento infringiu leis.

Martin McAllister, gerente geral do hotel Portland Marriott Downtown Waterfront, onde o evento foi realizado, disse em email que sua equipe foi enganada pelo cliente sobre a natureza do evento.

Elise Saunders disse que após a morte de seu marido ela tentou doar seu corpo à escola de medicina da Universidade Louisiana State. Mas a escola teria rejeitado a oferta porque o marido dela morrera de uma doença infecto-contagiosa.

Ela então procurou uma funerária de Baton Rouge, na Louisiana, que lhe indicou o laboratório Med Ed Labs, no estado de Nevada, que afirma fornecer cadáveres a organizações militares, governamentais, comerciais e sem fins lucrativos.

"Em momento algum me disseram que iam revender o corpo de meu marido", disse Saunders, aludindo aos documentos que firmou com a Med Ed Labs. "Sob circunstância alguma eu teria concordado em ter o corpo de meu marido exposto publicamente."

A Med Ed Labs negou ter cometido qualquer infração, dizendo que Saunderes autorizou a doação do cadáver.

Em declaração postada na sexta-feira (5), o laboratório disse que "não sabia que pessoas pagariam para assistir a um evento incluindo um de nossos doadores".

A empresa disse que a pessoa que realizou a dissecação é um "anatomista certificado", que descreveu como ex-professor da Universidade de Montana, que teria manuseado os restos mortais com "todo o respeito" e respondido a perguntas de membros do público "que se descreveram como estudantes, antropólogos e terapeutas".

Miller disse que a Death Science promove cursos e eventos educativos para o público em campos como medicina forense e anatomia. Um evento semelhante havia sido planejado para 31 de outubro em Seattle, mas fora cancelado. Miller disse ainda que a Med Ed Labs e a Death Science desfizeram sua sociedade.

Na tarde da quinta-feira, Miller disse que seu próprio envolvimento com a Death Science terminara.

Ele disse que a Oddities & Curiosities Expo vendeu ingressos a preços que variaram de US$ 100 a US$ 500.

Em email, a Oddities & Curiosities Expo não disse se vendeu ingressos. Afirmou que a Death Science organizou o evento, que não teria ocorrido em uma de suas próprias exposições. Em um espaço separado, disse a Oddities & Curiosities Expo, a Death Science foi um dos expositores "que venderam sua arte".

Miller disse que a Death Science não teve acesso a nenhum documento pessoal, incluindo o acordo de doação do cadáver.

Segundo ele, a Med Ed Labs forneceu o cadáver, os instrumentos e o anatomista que deu a aula. Ela teria reservado o espaço no hotel de Portland e teria conhecimento de que o público não seria formado exclusivamente por estudantes de medicina.

Obteen Nassiri, gerente da Med Ed Labs, disse em entrevista na semana passada que a organização pensou que o cadáver seria usado para ensino de estudantes e profissionais de medicina. Disse que a Death Science contatou o laboratório dizendo que precisava de um cadáver "para ensinar anatomia a estudantes".

"Fizemos algumas pesquisas preliminares e vimos que o objetivo deles era ensinar ciência da morte a estudantes", ele disse. "Pensei que o cadáver seria utilizado para finalidades de ensino e dissecação anatômica."

A Med Ed Labs adquiriu o cadáver da funerária em Baton Rouge e o despachou primeiro para Las Vegas e depois para Portland.

Nassiri disse que conversou com Saunders na quarta-feira.

"Ele estava extremamente aflito porque essa empresa agiu à nossa revelia e vendeu ingressos para esse evento a pessoas que não eram profissionais ou estudantes de medicina", falou.

A Death Science pagou cerca de US$ 10 mil pelo evento inteiro, disse Nassiri, incluindo o uso do cadáver, o transporte dele e o pessoal. Desde então o cadáver foi despachado de volta a Las Vegas, a caminho do Louisiana. Nassiri disse que a Med Ed Labs irá pagar por sua cremação e por uma urna.

A notícia divulgada em Seattle chegou rapidamente a veículos de mídia nacionais e internacionais, provocando indignação e lembrando controvérsias passadas sobre o manuseio de restos humanos em situações e espaços públicos.

Manifestantes se reuniram na Universidade de Pensilvânia no ano passado para protestar contra o tratamento dado por antropólogos à ossada de uma jovem vítima de um bombardeio. Os ossos foram mostrados num vídeo de um curso online: "Ossos Reais: Aventuras na Antropologia Forense". Em 2015, a Universidade de Edimburgo teria dividido opiniões quando promoveu workshops em que mostrou "materiais cadavéricos" ao público, segundo Carla Valentine, curadora do museu de patologia da Universidade de Londres.

Uma década antes disso, quando a exposição "Bodies" (corpos) foi aberta em Nova York, a empresa responsável por ela foi criticada por ter usado cadáveres vindos da China. Ela admitiu que não podia comprovar que os corpos não fossem de prisioneiros que possivelmente tivessem sido torturados ou executados.

Rina Knoeff, professora da Universidade de Groningen, na Holanda, e estudiosa da história da medicina, disse que a dissecação pública como entretenimento é algo que data pelo menos da Renascença.

"Acho que talvez se deva ao mesmo tipo de interesse que atraía pessoas para assistir a execuções públicas", ela comentou. "Talvez seja a emoção de ficar sentado, vendo alguém ser cortado em pedaços."

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.