Por que você deveria se preocupar com a Covid em animais

Cientistas identificaram 540 espécies de mamíferos com probabilidade de hospedar e transmitir o coronavírus

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Sabrina Imbler Emily Anthes
The New York Times

Barbara Han, do Instituto Cary de Estudos de Ecossistemas, é especialista em ecologia das doenças e sabia que era uma questão de quando o coronavírus infectaria animais, não de se isso aconteceria ou não.

Em 2020, quando chegaram as primeiras notícias de animais infectados, ela começou a trabalhar sobre um modelo de inteligência artificial que pudesse prever quais animais seriam os próximos atingidos.

"Nossa meta bastante ambiciosa era conseguir prever exatamente quais espécies deveríamos observar, em vista de como achamos que o vírus ia se espalhar", disse Han.

Enquanto sua equipe trabalhava, o fluxo de casos de coronavírus em novas espécies virou uma enxurrada: cães e gatos domésticos, visons de criação.

Um leão no National Zoological Gardens, na África do Sul; estudo mostra que os animais presos em zoológicos podem pegar Covid-19 de seus cuidadores
Um leão no National Zoological Gardens, na África do Sul; estudo mostra que os animais presos em zoológicos podem pegar Covid-19 de seus cuidadores - Phill Magakoe - 19.jan.22/AFP

O vírus infiltrou zoológicos, infectando os animais mais previsíveis (tigres e leões) e também as espécies mais surpreendentes (o quati, nativo das Américas e que lembra um cruzamento de guaxinim com lêmure, e o binturong, ou urso-gato-asiático, nativo do sudeste asiático e que lembra um cruzamento de guaxinim com homem idoso).

Han e seus colegas acabaram identificando 540 espécies mamíferas com maior probabilidade de hospedar e transmitir o coronavírus. Ela receava especialmente que a raposa-vermelha, um dos primeiros em sua lista de animais em risco e que é encontrada em grande número na Europa e América do Norte, seria suscetível ao vírus.

Estamos apenas esperando que alguém nos notifique disso", ela disse.

De fato, apenas alguns dias antes, pesquisadores no Colorado haviam anunciado que o vírus pôde infectar raposas-vermelhas em laboratório.

"Oh, não!", exclamou Han quando foi informada. "Quando você faz um trabalho como o meu, é muito chato descobrir que acertou uma previsão."

No outono passado, cientistas que analisaram amostras de tecido biológico de veado-galheiro no Iowa descobriram que o vírus estava largamente presente nessa espécie. A descoberta intensificou os receios de que o vírus possa estabelecer-se num reservatório animal, sofrer mutações e propagar-se para outras espécies, incluindo de volta à humana.

E isso abriu uma perspectiva assustadora: se os veados podem propagar o coronavírus silenciosamente, que outros animais podem fazê-lo? E quais o farão?

Especialistas dizem que não é preciso entrar em pânico e enfatizam que os culpados não são os animais.

"São os humanos que estão infectando os animais. Agora os animais estão doentes, e alguns estão morrendo", disse Han.

Identificar as espécies em risco é crucial para a proteção da saúde tanto de humanos quanto de animais. E é também um problema científico complexo, envolvendo uma gama grande de espécies potencialmente vulneráveis. Os cientistas precisam analisar um fluxo constante e caótico de previsões traçadas por computador, dados laboratoriais e infecções confirmadas em zoológicos, residências e na natureza.

Segundo os cientistas, a raposa-vermelha é uma das espécies mais suscetíveis a ser infectada pelo coronavírus
Segundo os cientistas, a raposa-vermelha é uma das espécies mais suscetíveis a ser infectada pelo coronavírus - Takashi Noguchi - 18.fev.12/AFP

Num mundo ideal, cientistas monitorariam todas as populações potencialmente suscetíveis. Mas no mundo real, estão tentando encontrar um delicado ponto de equilíbrio entre identificar as espécies que causam mais preocupação e ampliar o leque de suas pesquisas, à medida que o vírus passa por mutações e que emergem novas variantes.

"Não me surpreenderia se encontrássemos uma espécie animal ou reservatório animal do qual ninguém pensou", disse o virologista Diego Diel, da Universidade Cornell.

Os fundamentos da infecção

Cientistas utilizam ferramentas diversas para identificar espécies suscetíveis. Cada abordagem tem suas limitações, mas tomadas em conjunto elas traçam um quadro mais completo de quais animais estão em risco.

Algumas equipes de cientistas estão debruçadas sobre o receptor ACE2, uma proteína encontrada na superfície das células de muitas espécies. As saliências pontiagudas do coronavírus permitem que ele se ligue a esses receptores, como uma chave entrando numa fechadura, e penetre nas células.

Em 2020 um grupo de cientistas comparou os receptores de ACE2 de centenas de animais vertebrados, na maioria mamíferos, com as dos humanos, para determinar quais espécies o vírus poderia infectar. (Os receptores de ACE2 de aves, répteis, peixes e anfíbios não têm semelhança suficiente com os nossos para causar preocupação.)

"As previsões têm sido muito boas até agora", escreveu em e-mail o biólogo Harris A. Lewin, da Universidade da Califórnia em Davis e um dos autores do estudo. Os cientistas previram, por exemplo, que os veados-galheiros corriam alto risco de infecção.

Mas algumas das previsões foram inteiramente equivocadas: o artigo identificou visons de criação como uma espécie que causa preocupação "muito pequena" —e então, em abril de 2020, a infecção correu solta em criações de vison.

De fato, o ACE2 traz apenas um instantâneo da susceptibilidade ao vírus.

"A infecção viral e a imunidade contra vírus é algo muito mais complexo do que simplesmente um vírus que se fixa a uma célula", disse em e-mail a viróloga Kaitlin Sawatzki, da Universidade Tufts.

E, das quase 6.000 espécies de mamíferos no mundo, cientistas sequenciaram até agora os receptores de ACE2 de apenas algumas centenas, criando um conjunto de dados enviesado.

Assim, os cientistas precisam buscar maneiras criativas de traçar previsões para animais cujas sequências de ACE2 ainda não são conhecidas. As sequências de ACE2 desempenham um papel crucial nas funções biológicas básicas, como a regulação da pressão sanguínea.

Colhendo os detalhes básicos da história de vida de uma espécie —do que ela se alimenta, se ela tem hábitos noturnos ou não etc.—, a equipe de Han treinou um algoritmo de aprendizado de máquina a identificar as que pareciam ter probabilidade maior de fixar-se ao vírus e transmiti-lo. Isso lhes permitiu prever a suscetibilidade ao vírus de muitos outros mamíferos.

Os cientistas podem testar as previsões computadorizadas no laboratório, tentando infectar células de animais ou animais vivos com o vírus. Tais experimentos podem diferenciar espécies que podem parecer semelhantes. Um estudo constatou que os roedores da espécie Peromyscus podem ser infectados pela versão original do vírus e podem transmiti-la, o que não é o caso dos camundongos (da espécie Mus).

Mas algo que acontece numa coleção de células nem sempre ocorre em animais reais, e o que acontece em um laboratório, onde animais geralmente recebem doses altas do vírus, pode não refletir a vida real. Por exemplo, embora o vírus original possa replicar-se em linhas de células suínas, os pesquisadores descobriram que os suínos não parecem ser altamente suscetíveis a ele.

Imagem em microscópio eletrônico mostra os coronavírus que provocam a Covid-19
Imagem em microscópio eletrônico mostra os coronavírus que provocam a Covid-19 - Divulgação/US National Institute of Allergy and Infectious Diseases

Para descobrir se animais foram infectados pelo vírus no mundo real, cientistas podem realizar chamados estudos serológicos, procurando anticorpos do coronavírus no sangue deles.

"A serologia nos ajuda a analisar a exposição histórica", disse o Dr. Suresh Kuchipudi, microbiólogo veterinário na universidade Penn State.

Morcegos têm sido motivo de preocupação porque são reservatórios de outros coronavírus, e muitos cientistas pensam que o Sars-CoV-2 emergiu inicialmente de morcegos. Mas as espécies de morcegos são incrivelmente diversas, e nem todas parecem ser suscetíveis ao vírus. Segundo os cientistas, isso destaca o fato de que os animais que motivam a maior preocupação podem não ser os mais evidentes.

Para complicar as coisas, o vírus não é estático, e animais que resistiram à infecção com variantes passadas podem ser vulneráveis a variantes novas. Por exemplo, camundongos de laboratório que não eram suscetíveis ao coronavírus original ou à variante delta foram suscetíveis às variantes beta e gama.

"Esse é o problema com as doenças emergentes", comentou Scott Weese, veterinário especializado em doenças infecciosas, da Universidade de Guelph, em Ontário (CAN). "Temos que atualizar nossos conhecimentos continuamente cada vez que alguma coisa muda."

Uma lista restrita de espécies

A vulnerabilidade biológica é apenas uma peça do quebra-cabeça. A possibilidade de uma espécie animal tornar-se um reservatório de vírus depende de uma constelação de fatores.

"Depende do comportamento social da espécie, da resposta imune dos animais, do tamanho da população, dos tipos de ligações com diferentes populações de animais", disse Keith Hamilton, diretor do departamento de preparo e resiliência da Organização Mundial para a Saúde Animal.

Em se tratando de um vírus que é transmitido sobretudo por humanos, a relação de uma espécie animal conosco tem importância enorme. Embora os receptores de ACE2 do narval os coloque em "alto risco de infecção", oficialmente falando, é improvável que um deles tope com um de nós.

Cães, gatos e hamsters de estimação podem todos ser infectados pelo vírus. É provável que hamsters de uma loja de pets em Hong Kong tenham infectado duas pessoas, fato que levou a um grande sacrifício em massa de hamsters, que provocou controvérsia.

Mas é muito mais provável que nós transmitamos o vírus a nossos pets do que eles nos infectem, e, previram cientistas, muitas dessas infecções não seguirão adiante. Pets infecciosos também podem ser isolados.

Funcionários da vigilância sanitária de Hong Kong recolhem exemplares de hamsters em um pet shop da cidade de Mong Kok, onde um hamster foi detectado com o coronavírus
Funcionários da vigilância sanitária de Hong Kong recolhem exemplares de hamsters em um pet shop da cidade de Mong Kok, onde um hamster foi detectado com o coronavírus - Lam Yik - 19.jan.22/Reuters

"O hamster que você comprou há um bom tempo e vive em sua casa não constitui um grande risco para você", disse Hamilton.

Para os cientistas, um motivo de preocupação maior são as espécies ditas "peridomésticas" que vivem ao nosso lado mas se deslocam livremente. Na América do Norte, elas incluem os roedores do gênero Peromyscus, as raposas-vermelhas e os gatos ferais.

Esses animais podem funcionar como pontes entre os humanos e as populações selvagens, propagando o vírus para espécies com as quais possivelmente não temos contato. E os roedores, que são reservatórios de outros patógenos, "devem sem dúvida estar no topo da lista", disse Kuchipudi.

Para monitorar esse risco potencial, funcionários do Departamento de Agricultura dos EUA e outras agências estão procurando sinais do vírus em alguns desses animais que vivem em zoos, reservas e criações de vison. Entre eles figuram roedores, jaritatacas, raposas e gambás.

Em termos globais, determinadas espécies ameaçadas de extinção também são motivo de preocupação. Três leopardos-das-neves de um zoo no Nebraska morreram depois de contrair o coronavírus, e foi descoberto um filhote de leopardo selvagem na Índia infectado com o vírus.

Os grandes primatas, que têm contato frequente com turistas e cientistas, são vulneráveis a outros vírus respiratórios.

"Os grandes primatas são singularmente suscetíveis aos patógenos humanos, isso porque há um parentesco genético estreito entre eles e nós", disse Kirsten Gilardi, veterinária de animais selvagens na Universidade da Califórnia em Davis.

Até agora não foi notificado nenhum caso de primata selvagem infectado com o coronavírus, mas pesquisadores estão monitorando os animais de perto, colhendo amostras fecais dos que têm doenças respiratórias.

Tradução de Clara Allain

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