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Para neurocientista Sidarta Ribeiro, sonhos são antídoto para extinção da espécie

Neurocientista prescreve otimismo e solidariedade para desarmar bomba planetária

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Santo Antônio do Pinhal (SP)

Biólogo, capoeirista, escritor, neurocientista, visionário: Sidarta Ribeiro colecionou muitos chapéus em seus 51 anos e os equilibra todos em novo livro, "Sonho Manifesto, Dez Exercícios Urgentes de Otimismo Apocalíptico". O tema é o mesmo do best-seller "O Oráculo da Noite" (2019) e de alguns entre mais de uma centena de artigos científicos que publicou: a importância dos sonhos para a sobrevivência.

Simplificando muito, é como se os sonhos fossem geradores de cenários e soluções com base na experiência passada: "Sonhar com um futuro melhor está na essência do sonhar, seja durante o sono ou na vigília", diz Sidarta, como é mais conhecido.

O neurocientista explica que sonhar recruta áreas cerebrais relacionadas com empatia, vale dizer, nossa melhor natureza, capaz de contrabalançar as inclinações violentas igualmente herdadas da ancestralidade humana. Daí seu otimismo, ainda que apocalíptico.

Sidarta Ribeiro participa da edição de 2019 da Flip, em Paraty - Eduardo Anizelli - 13.jul.2019/Folhapress

"A explosão vertiginosa do sofrimento planetário […] é uma marca do tempo extremado que vivemos. Superar essa explosão de sofrimento através de uma expansão de consciência é a tarefa das gerações que estão vivas agora –e para isso precisamos reaprender a sonhar, tanto metafórica quanto literalmente."

Sonhar é também reconectar-se com a própria mente e o próprio corpo, reativar a introspecção que se esvai entre selfies, stories e likes. Para chegar lá, vale lançar mão de tudo que a inventividade humana já criou, das práticas milenares de ioga e meditação aos ensinamentos de povos originários e à moderna ciência de ponta. Ideias é que não faltam sob tantos chapéus.

Você é um estudioso dos sonhos, tema de seu best-seller que fala da necessidade de nos reconectarmos com essa atividade psíquica. No novo livro, reitera que precisamos reaprender a sonhar, mas neste caso soa mais como imaginação política, inovação social e reativação da solidariedade. É só uma metáfora, ou há uma conexão mais profunda entre esses dois sentidos de "sonhar"? Sim, há uma conexão mais profunda, pois sonhar com um futuro melhor está na essência do sonhar, seja durante o sono ou na vigília. A experiência onírica, como viagem noturna ou devaneio da vigília, é um estado mental que recrutas as mesmas regiões cerebrais que são necessárias à empatia. A explosão vertiginosa do sofrimento planetário, tanto entre seres humanos quanto entre muitas outras espécies, é uma marca do tempo extremado que vivemos. Superar essa explosão de sofrimento através de uma expansão de consciência é a tarefa das gerações que estão vivas agora –e para isso precisamos reaprender a sonhar, tanto metafórica quanto literalmente.

No primeiro capítulo, você afirma que "as dez pessoas mais ricas do mundo poderiam, com facilidade, após alguns telefonemas de poucas palavras, ter contido o contágio [da Covid] em todo o globo, evitando a mortandade e o surgimento de variantes mais transmissíveis e letais". Essa afirmação não implica atribuir poderes sobre-humanos a quem detém a maior parte da riqueza no mundo? Poderes sobre-humanos não, ao contrário: ancestral responsabilidade humana. Desde o paleolítico os seres humanos vêm se distanciando dos outros animais pelo aumento progressivo da capacidade de cooperar. A ética do cuidado foi tão ou mais importante para o sucesso da nossa linhagem quanto a ética da competição.

Hoje, o problema do planeta não é a escassez, mas a desigualdade distributiva não apenas de bens materiais, mas também de bens imateriais. Dinheiro em excesso é tóxico e causa dependência, e é possível presumir que os cerca de 3.000 bilionários e bilionárias do planeta estão, com poucas e honrosas exceções, totalmente dependentes de dinheiro.

Se uma pessoa tem bilhões de reais e em lugar de usá-los para melhorar o planeta prefere se esforçar para ganhar mais dinheiro –e sofrer com isso!–, essa pessoa está doente. Reconhecer isso é necessário. É muito bom que Bill e Melinda Gates tenham doado uma parte de suas fortunas para causas meritórias, mas com certeza seus pares podem fazer muito mais. Chuck Feeney [fundador do Duty Free] doou toda sua fortuna em vida. MacKenzie Scott [ex-mulher de Jeff Bezos, fundador da Amazon] está indo nesse caminho.

Mesmo que as pessoas bilionárias invistam 99% de suas fortunas na melhoria do planeta, suas condições de existência não se alterarão em nada. É importante ter em mente que o sistema capitalista atual não salva ninguém do sofrimento psíquico, nem mesmo os materialmente mais ricos. O vício em dinheiro traz ansiedade, depressão, solidão, desconfiança, paranoia e enorme medo da morte.

A civilização humana adoradora do deus dinheiro está doente e precisa de cura. A competição a todo custo e o acúmulo sem limites tem uma inércia evolutiva perigosa. Se quisermos permanecer no planeta, os mais fortes precisarão cuidar dos mais fracos –e não os destruir como acontece hoje. Temos abundância de sobra, tanto de riquezas quanto de saberes. Agora precisamos de equilíbrio, sabedoria, partilha e tolerância. A boa notícia é que temos tudo isso em nossa bagagem cultural planetária.

Sem pretender diminuir a gravidade da crise climática ou minimizar os efeitos de uma guerra nuclear mundial, é pouco provável que a espécie humana se extinga mesmo nos piores cenários. Ela surgiu de menos de 3.000 indivíduos que saíram da África e se provou extremamente adaptável. Brandir a ameaça de extinção não reforça o alarmismo que engendra pessimismo e imobilismo, como alertam vários estudiosos do clima? Quando a casa está pegando fogo, não convém esperar. Como diz o I Ching, "se há alguma coisa por fazer, apressar-se traz boa fortuna". Por outro lado, numa emergência, é preciso manter a cabeça fria. Como é que a gente sai da sinuca de bico evolutiva em que nos metemos? Não adianta só agir, precisamos saber como agir.

Menos importante do que saber se a extinção da espécie humana será uma hecatombe súbita ou um lento e fedorento declínio de nossas potencialidades, precisamos mapear com urgência e realizar com lucidez múltiplos ajustamentos de conduta. Só assim poderemos escapar dos muitos futuros tétricos que despontam no horizonte, como o panorama esboçado pelo excelente filme "Medida Provisória", dirigido por Lázaro Ramos.

Precisamos desses ajustamentos de conduta não apenas para superar o inferno que já existe neste planeta para bilhões de seres humanos e dezenas de bilhões de seres não-humanos, mas para realizar aqui mesmo, na Terra, uma trajetória realmente digna e sublime, herdeira legítima das melhores e mais sábias contribuições de nossos ancestrais –e de nosso compromisso com os que virão depois de nós.

Você diz que nossa ancestralidade tem partes doentes, como a agressividade e a territorialidade de machos que está na raiz do patriarcalismo, e partes benevolentes, como a cooperação e a solidariedade. Não há uma certa miopia quando se glorifica a sabedoria remanescente nos povos tradicionais e seus xamãs, como se neles enxergássemos somente a parte saudável? A glorificação de qualquer perspectiva em particular é um equívoco. O esforço que se faz necessário e urgente é no sentido de uma grande síntese cultural capaz de tratar e curar, com todas as ferramentas à nossa disposição, das mais antigas às mais recentes, um conjunto de males ancestrais altamente tóxicos para a sociedade.

Ao mesmo tempo, precisamos resgatar, nutrir e articular os inúmeros saberes originários e tradicionais ao explosivo acúmulo de saber científico do momento presente. O que precisamos nesse momento é do bom e do melhor de todas as esferas do conhecimento humano, dentro e fora dos saberes tradicionais, dentro e fora das ciências, dentro e fora das religiões, com inclusão de todas as perspectivas.

Você aponta como alguns dos principais males do mundo contemporâneo a brutal desconexão das pessoas com o próprio corpo e a própria mente, a ausência de introspecção. Fala de técnicas milenares como ioga, meditação e respiração, mas quão factível pode ser essa prescrição para mais de 7 bilhões de pessoas? Você também menciona maconha e psicodélicos: não seriam eles caminhos mais apropriados nos dias de hoje, desde que superada a proibição? Práticas de autoconhecimento e medicinas enteogênicas [etimologicamente, algo como "gerador do divino interno"] não se excluem mutuamente, ao contrário, são sinérgicas. Capoeira, chi kung, ioga, meditação, respiração e tantas outras riquezas da cultura humana podem ser até mais fáceis de acessar do que o caminho farmacológico, desde que exista acesso a treinamento de boa qualidade.

É importante lembrar que o uso de medicinas enteogênicas não se resume à ação química dessas substâncias, mas requer também psicoterapia integrativa. O mais importante em ambos os caminhos é a qualidade dos ensinamentos praticados e dos vínculos humanos envolvidos.

Por outro lado, parece haver um excesso de esperança em torno dos psicodélicos, em particular, assim como o risco de sua monopolização pela indústria biomédica e camadas de propriedade intelectual. O que está faltando para injetar realismo no chamado renascimento psicodélico? Psicodélicos são poderosos indutores de mudanças nas conexões nervosas, e como tais são ferramentas poderosas de transformação mental. Entretanto, sem suporte humano de boa qualidade e contextos de uso adequados, que permitam navegar a experiência subjetiva na direção do amor, do bem-estar e da ética do cuidado, os psicodélicos podem ser pouco eficazes, como um vento forte que bate numa vela solta, não move o barco e pode até virá-lo.

Sou cético quanto à capacidade de captura dos psicodélicos pelo capitalismo predatório, pois seu uso envolve doses muito baixas e bastante ocasionais de substâncias de origem natural, presentes em fungos, plantas e animais. A parte mais dispendiosa e de maior valor agregado da terapêutica psicodélica são as pessoas encarregadas da construção e proteção do contexto de uso, sejam pajés, psicoterapeutas, psiquiatras ou neurocientistas. Precisamos investir na formação e atuação dessas pessoas.

Você abre o livro com o mito de Angulimala, facínora colecionador de dedos que se regenera ao encontrar o Buda, e diz que deveria servir de inspiração para todos os opressores: "É sempre possível e desejável deixar de cometer maldades irreversíveis". Seu otimismo inclui o presidente Jair Bolsonaro (PL)? Intimamente, cada pessoa neste planeta está tentando fazer o seu melhor. A distância entre essa percepção individual e o que de fato cada pessoa gera ao seu redor, nas outras pessoas, dá uma medida da distorção das percepções de maldade e bondade.

Não tenho o otimismo de achar que todas as pessoas opressoras do planeta conseguirão se iluminar, muito menos Bolsonaro. Mas acredito firmemente que um número suficientemente grande de pessoas, de todos os gêneros, raças e classes sociais, pode e deve despertar.

Os saberes reunidos da espécie humana têm potencial para reestruturar profundamente nosso modo de estar no mundo, de forma a aumentar o bem-estar geral e regenerar os biomas. A desigualdade de bens materiais e imateriais está crescendo explosivamente, o meio ambiente está em convulsão e temos pouco tempo para agir antes de que o processo seja irreversível.

As condições estão dadas para um grande salto e o tempo urge. É a tarefa maior das gerações que estão vivas. Precisamos construir esse sonho para os que virão depois de nós.

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