Descrição de chapéu câncer universidade

Estudos com órgãos em chips e organoides podem acabar com testes em animais

Pesquisas têm sucesso em recriar tecidos com mesmas propriedades físicas e químicas que os sistemas animais

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São Paulo

Uma nova tecnologia para testar medicamentos e realizar pesquisas relacionadas à saúde pode levar ao fim dos experimentos em animais em laboratório.

São os chamados órgãos em chips e organoides, criados nos últimos 15 anos e que têm revolucionado as pesquisas em saúde.

Imagem de microscopia mostrando o aspecto de um organoide cerebral derivado de células humanas. As células em verde são os progenitores de neurônios e as células em vermelho são os neurônios
Imagem de microscopia mostrando o aspecto de um organoide cerebral derivado de células humanas; as células em verde são os progenitores de neurônios, e as células em vermelho são os neurônios - Fábio Papes/Unicamp

A metodologia recria os tecidos e órgãos em pequenos modelos tridimensionais que simulam os sistemas humanos, permitindo assim a observação dos efeitos nos nossos próprios organismos de maneira mais eficaz.

Com a preocupação crescente envolvendo as questões éticas do uso de modelos animais na medicina e também a dificuldade em prever com 100% de precisão os efeitos a partir apenas de animais não humanos —muitas vezes as pesquisas clínicas falham justamente na passagem dos testes em animais para os em pessoas—, os novos modelos podem diminuir erros e derrubar as barreiras para deixar de utilizar experimentações.

Diferentemente do cultivo de células em placas, utilizado há mais de um século, os novos modelos simulam tecidos, órgãos ou partes de órgãos incluindo as interações entre os diferentes tipos de célula em estruturas tridimensionais ou em chips interconectados.

Os órgãos em chips são conectados a um sistema, por exemplo o vascular, ao mesmo tempo que as células são arranjadas como seriam no órgão verdadeiro. É como se fosse uma rede de conexões, similar ao que ocorre nos chips eletrônicos de celular, mas onde as vias de comunicação são formadas por grupos de células e que interagem —por exemplo, o caminho de uma proteína secretada na célula até outro tecido.

A patente foi criada por Donald Ingber, então diretor do Instituto Wyss, da Universidade de Harvard, em 2010, com um modelo bem-sucedido de pulmão em chip. Desde então, diversas pesquisas avançaram para criar outros órgãos e sistemas e têm ajudado a compreender as vias moleculares de troca de fluidos e interações bioquímicas entre células.

Já os organoides são modelos tridimensionais de células vivas que apresentam características observadas em partes de órgãos ou tecidos humanos. Diferente das células cultivadas em placas, que possuem apenas uma camada fina e plana (nas lâminas analisadas em microscópio), os organoides são como uma "fatia de bolo", apresentando altura, profundidade e largura. Eles ajudam a preservar funções presentes nos tecidos de origem, como as diferentes camadas (derme, vasos, músculos, etc.) dos órgãos.

Isso permite, por exemplo, "ligar e desligar" expressões de proteínas nas superfícies das células e ver como elas interagem com outros sistemas.

Existem diversas aplicações dos organoides atualmente na pesquisa médica, como por exemplo o crescimento e tratamento de tumores, embriogênese (formação dos tecidos embrionários) e desenvolvimento celular, regeneração e estudos imunoterápicos.

A imagem é de um cérebro sobre um fundo preto. O cérebro é representado por pontos azuis, e alguns pontos verdes se espalham pela superfícia.
Minicérebro contaminado pelo vírus da zika. As células infectadas aparecem iluminadas em verde e os núcleos celulares em azul. - Divulgação/Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino

Para Stevens Rehen, neurocientista e professor do Instituto de Biologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), os organoides têm revolucionado a pesquisa médica por sua capacidade de expressarem fenômenos mais complexos entre órgãos.

"Em nosso laboratório, cultivamos organoides cerebrais humanos a partir de células retiradas de biópsias da pele ou coletadas da urina de voluntários e são frequentemente utilizados para estudar fenômenos complexos que emergem da interação entre células", diz.

Rehen e sua equipe utilizam, em seus estudos no Idor (Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino), organoides cerebrais para avaliar os efeitos de vírus como o zika e o Sars-CoV-2 no tecido cerebral humano e no potencial médico de psicodélicos.

Além dos organoides gerados a partir de células reprogramadas de pacientes, Rehen ressalta que também existem os chamados PDOs (organoides derivados de pacientes, na sigla em inglês), que são cultivados a partir de amostras e ajudam a compreender a biologia dos tumores ou de doenças específicas.

Em uma publicação no início de fevereiro na revista especializada Cell Stem Cell, pesquisadores do Departamento de Neurocirurgia da Universidade de Pensilvânia (EUA) demonstraram que organoides de cérebro, quando implantados em ratos em laboratório, responderam com sucesso a estímulos luminosos, abrindo um novo caminho para o estudo de terapias que possam recuperar áreas danificadas do cérebro nos humanos.

Outras aplicações dos organoides cerebrais são para a pesquisa de danos cerebrais envolvidos em doenças degenerativas, como o Alzheimer.

A aplicação dos novos modelos pode, ainda, ser combinada para unir o modelo tridimensional celular, proporcionado pelos organoides, com o sistema de comunicação por canais e circuitos dos chips.

Em um estudo mais recente, pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts e do Hospital Brigham de Mulheres, em parceria com o Instituto Wyss, combinaram um órgão em chip com um organoide para simular um tipo de condição comum em crianças, a doença renal policística recessiva autossômica (APRKD, na sigla em inglês). A mortalidade dessa doença chega a 30% na primeira infância.

O modelo inicial criado para analisar a expressão do gene mutado PKHD1, relacionado à doença, não teve sucesso porque era difícil imitar as condições biofísicas dos rins no organoide —o gene só é expressado quando o fluxo urinário passa pela células. Os pesquisadores então inseriram as células modificadas com a mutação PKHD1 em um chip e estimularam as células com uma simulação de fluxo urinário.

O resultado foi a visualização de duas moléculas envolvidas na expressão do gene mutagênico na superfície celular e que podem servir de alvo para novas terapias.

No Brasil, a equipe de Rehen publicou recentemente um estudo para entender as condições biológicas e químicas envolvidas no processo de degeneração celular do Alzheimer. De acordo com o estudo, o acúmulo de proteínas beta-amiloide e tau, já associadas no passado ao desenvolvimento precoce de Alzheimer, puderam ser estudados em organoides derivados de pacientes com a condição.

"Isso permitirá testar o efeito de novas substâncias sobre o acúmulo dessas proteínas, o que pode ajudar no desenvolvimento de novos tratamentos", ressalta, lembrando que as pesquisas desse tipo ainda estão em fases iniciais e os resultados precisam ser confirmados com demais estudos.

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