Descrição de chapéu The New York Times genética

Finalmente, a árvore genealógica do jumento

Pesquisadores concluem que esses animais foram domesticados apenas uma vez, por volta de 5.000 a.C.

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Franz Lidz Samuel Aranda
The New York Times

O jumento é um personagem chave, embora cada vez mais marginalizado, na história humana. Uma vez venerado, o animal tem sido objeto de ridículo há tanto tempo que a palavra "asinino" —derivada do latim "asinus", que significa "como um asno ou jumento"— significa "estúpido". Os jumentos e seu trabalho são essenciais para a subsistência das pessoas nos países em desenvolvimento, mas em outros lugares eles praticamente desapareceram.

"Acho que simplesmente esquecemos a importância desse animal, provavelmente impressionados com o impacto de seu primo próximo, o cavalo", disse Ludovic Orlando, diretor do Centro de Antropobiologia e Genômica de Toulouse, na França.

"Na Europa, o cavalo forneceu mobilidade rápida e ajudou a cultivar e guerrear. Não tenho certeza se podemos afirmar que o impacto do jumento foi tão grande." Em comparação com cavalos e cães, os jumentos receberam relativamente pouca atenção dos arqueólogos, muito menos dos geneticistas.

No novo estudo, genética é combinada com arqueologia para revelar as origens dos jumentos
No novo estudo, genética é combinada com arqueologia para revelar as origens dos jumentos - Samuel Aranda/NYT

No entanto, apesar de este ser o Ano do Coelho de acordo com o zodíaco chinês, pode ser apenas o Ano do Jumento. O filme indicado ao Oscar "EO" apresenta como herói um jumento comovente e barbaramente maltratado. E os jumentos estrelam um importante novo estudo genético publicado na revista Science. Peter Mitchell, arqueólogo de Oxford que não participou do projeto, chamou-o de "o estudo mais abrangente da genômica de jumentos até agora".

Orlando, que passou anos mapeando a história da domesticação de cavalos, é o autor do artigo, que ele espera que impulsione a pesquisa sobre o humilde jumento e restaure um pouco de sua dignidade. Ele e pesquisadores de 37 laboratórios do mundo todo analisaram os genomas de 207 jumentos modernos, vivendo em 31 países. Eles também sequenciaram o DNA dos esqueletos de 31 jumentos primitivos, alguns dos quais datam de 4.500 anos.

Os estudiosos já haviam identificado três centros potenciais de domesticação, no Oriente Próximo, no nordeste da África (incluindo o Egito) e na Península Arábica. Mas a equipe de Orlando concluiu que os jumentos —o primeiro meio de transporte terrestre da humanidade— foram domesticados apenas uma vez, por volta de 5.000 a.C., quando pastores no Chifre da África e no atual Quênia começaram a domar jumentos selvagens. Essa data é cerca de 400 anos antes das primeiras evidências arqueológicas de jumentos domesticados em El Omari, perto do Cairo, e quase três milênios antes de os cavalos serem arreados pela primeira vez.

O período coincidiu com aquele em que o Saara cresceu e se tornou mais árido. Os jumentos são especialmente resistentes à seca e tolerantes à privação de água, o que levou Orlando a especular que eles se tornaram um meio de transporte indispensável para os pastores e seus produtos. "Encontrar um auxiliar de transporte nessas condições cada vez mais difíceis provavelmente estimulou o processo de domesticação."

A partir desse ponto de origem no nordeste da África, a equipe reconstruiu a árvore evolutiva dos jumentos e traçou suas rotas de dispersão pelo resto do continente. Os jumentos foram negociados a noroeste no atual Sudão e depois no Egito, saindo da África há cerca de 5.000 anos e se expandindo para a Ásia e a Europa cerca de 500 anos depois. As várias populações de jumentos tornaram-se mais isoladas pela distância, embora o comércio resultasse em mudanças sistemáticas de volta à África. O cruzamento entre linhagens era limitado.

Um estudo de 2004 de uma pequena amostra de DNA moderno de centenas de jumentos sugeriu que os humanos domesticaram jumentos selvagens duas vezes, na África e na Ásia. O pesquisador principal, Albano Beja-Pereira, geneticista da Universidade do Porto, em Portugal, trabalhou com Orlando e sua colega Evelyn Todd para rever as conclusões usando um conjunto de dados maior, e agora concorda com a hipótese de domesticação única.

Para os nossos antepassados, o jumento assumia uma dimensão mítica e religiosa extremamente variada. No antigo Egito, era um dos animais sagrados de Seth, o Senhor do Caos. No folclore grego, um jumento —um equídeo envolvido na colheita e produção de vinho— era a montaria que carregava o deus Dionísio para a batalha contra os gigantes, e flautas feitas de tíbias de jumento (que produziam um som semelhante a um zurro) eram usadas em sua adoração.

Os jumentos são fundamentais na iconografia judaica, cristã e muçulmana: no Antigo Testamento, a jumenta de Balaão viu um anjo e murmurou profecias. No Novo Testamento, Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento no dia em que os cristãos celebram o Domingo de Ramos. Ya'fur era o nome do jumento que o profeta Maomé teria montado e com ele conversado, segundo relatos.

Diretor Ludovic Orlando observa o trabalho de pesquisadores com o DNA de jumentos antigos e modernos em Toulouse (FRA)
Diretor Ludovic Orlando observa o trabalho de pesquisadores com o DNA de jumentos antigos e modernos em Toulouse (FRA) - Samuel Aranda - 14.mar.23/NYT

Durante a Idade do Bronze, de 3.300 a.C. a 1.200 a.C., jumentos às vezes eram enterrados com humanos, indicando uma concessão de honra a ambas as partes. "Em outros casos, nós os encontramos como depósitos rituais embaixo dos pisos, como descoberto recentemente em Tell es-Safi, ou aparentemente enterrados sozinhos", disse Laerke Recht, arqueóloga da Universidade de Graz, na Áustria, que também trabalhou no novo estudo. Ela citou um termo que remonta pelo menos ao segundo milênio a.C.: "matar um jumento", que significa assinar um tratado, ato que aparentemente envolvia um sacrifício.

As novas descobertas revelaram uma linhagem previamente desconhecida de jumentos presentes no Levante por volta de 200 a.C. Em um sítio arqueológico no terreno de uma vila romana na aldeia francesa de Boinville-en-Woëvre, a 280 km de Paris, pesquisadores encontraram o que parece ter sido um centro de criação de jumentos, onde animais da África Ocidental foram acasalados com seus semelhantes europeus. Os animais de carga resultantes mediam 155 centímetros do solo à cernelha. O padrão atual é de 130 centímetros. Os únicos jumentos modernos comparáveis são os americanos Mammoth Jacks —machos grandes e robustos criados para produzir mulas de tração ou para trabalhos agrícolas.

Orlando disse que a produção de linhagens de jumentos gigantes ocorreu numa época em que as mulas —filhas estéreis de jumentos machos, ou jumentos gigantes (jacks), e éguas— eram vitais para a economia romana e seus militares. "Não seriam necessárias tantas gerações para criar seletivamente jumentos cada vez maiores", disse Dean Richardson, professor de cirurgia equina no New Bolton Center da Escola de Medicina Veterinária da Universidade da Pensilvânia. "Os jumentos gigantes sempre foram procurados para fazer mulas mais valiosas."

Em seu diário de viagem de 2008 "A Sabedoria dos Jumentos", o acadêmico britânico Andy Merrifield observa que Benjamin, o jumento cético de "A Fazenda dos Animais", de George Orwell, deseja apenas se retirar para um pasto com seu amigo, um cavalo chamado Boxer. Merrifield encontra nos olhos de um jumento "uma tristeza comovente, uma graça" e uma pureza que "não tem o direito de existir no mundo humano".

Ainda assim, o lucrativo comércio de peles de jumento, uma indústria global muitas vezes ilegal, não regulamentada e em expansão, incentiva a criação intensiva para colher couros, que são fervidos para fazer "ejiao", uma gelatina usada principalmente em remédios tradicionais chineses. "Isso obviamente vai contra o bem-estar animal e causa uma ameaça às populações locais de jumentos e àqueles que dependem desse animal para sua subsistência", disse Orlando. "De qualquer forma, nosso trabalho revela que nosso relacionamento com o animal remonta há muito tempo. Isso deve nos ajudar a perceber os inúmeros serviços que eles prestaram à humanidade e, possivelmente, nos tornar gratos."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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