Descrição de chapéu África

Mudança ambiental deu origem aos grandes símios na África, indicam estudos

Ancestrais do homem com o tronco ereto teriam surgido por volta de 20 milhões de anos atrás

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São Carlos (SP)

As mudanças ambientais que abriram caminho para a origem dos ancestrais da humanidade na África podem ter acontecido muito antes do que se imaginava, segundo dois estudos que acabam de ser publicados.

De acordo com as análises, a África Oriental já contava com áreas de vegetação aberta e forte presença de gramíneas tropicais por volta de 20 milhões de anos atrás. E novos fósseis de primatas encontrados na região indicariam que os antepassados dos grandes símios e dos seres humanos tinham desenvolvido um tronco ereto por causa desses novos habitats abertos já nessa época.

Os dados em favor dessa hipótese estão na última edição da revista especializada americana Science. Para traçar um novo retrato das transformações que afetaram a região a partir do Mioceno (época geológica que começou há 23 milhões de anos), a equipe internacional de cientistas analisou características dos solos, restos de vegetais e a fauna pré-histórica.

Reconstrução artística da espécie de primata Morotopithecus bishopi na África Oriental há cerca de 20 milhões de anos
Reconstrução artística da espécie de primata Morotopithecus bishopi na África Oriental há cerca de 20 milhões de anos - Corbin Rainbolt/Divulgação

Nos estudos sobre a evolução dos grandes símios africanos e da linhagem do ser humano, que é derivada diretamente deles, existe uma grande controvérsia sobre o papel das áreas de vegetação aberta. Até agora, a maioria dos especialistas acreditava que as áreas tropicais da África eram dominadas por grandes florestas de vegetação fechada até pelo menos uns 10 milhões de anos antes do presente.

A partir daí, mudanças geológicas e climáticas que teriam trazido mais aridez e sazonalidade (ou seja, diferenças mais fortes entre as épocas do ano, em especial a das chuvas e a da seca) teriam "quebrado" as matas fechadas.

Surgiram então áreas de savana, com árvores mais esparsas e a expansão das gramíneas tropicais, também designadas como gramíneas C4 pelos botânicos (um exemplo hoje muito comum nas pastagens do Brasil é a braquiária). São plantas que se adaptaram às novas condições ambientais e se expandiram por boa parte do continente africano.

Uma possibilidade é que essa fragmentação das grandes matas primordiais na África tenha forçado alguns primatas a se adaptarem à locomoção terrestre, para que eles pudessem, por exemplo, procurar recursos alimentares indo de uma árvore para outra. Esse processo poderia ser um dos gatilhos para a origem dos hominínios, a linhagem que deu origem aos seres humanos.

No entanto, os novos estudos complicam bastante esse cenário ao mostrar que algo muito parecido pode ter acontecido já na origem dos grandes símios —o grupo mais abrangente do qual faz parte tanto o Homo sapiens quanto os chimpanzés, gorilas e orangotangos.

Os trabalhos, que foram coordenados por Laura MacLatchy e John Kingston, da Universidade de Michigan em Ann Arbor (EUA), indicam que já havia diversos locais com abundância de gramíneas C4 na África Oriental (em Uganda e no Quênia) por volta de 20 milhões de anos atrás. É possível inferir isso não exatamente com base em fósseis das tais gramíneas —os quais, em geral, não existem—, mas com base, entre outras coisas, na composição química dos solos antigos.

Isso porque as gramíneas C4 formavam suas folhas e caule usando uma proporção diferente de formas do elemento químico carbono, se comparadas a outros tipos de plantas. É como um carimbo ou uma assinatura, que fica preservado no solo mesmo depois que o vegetal se decompôs. Além disso, os sedimentos do início do Mioceno também abrigam os chamados fitólitos, grãozinhos minerais produzidos pelas plantas que têm formato diferente dependendo do tipo de vegetal. Assim, é possível inferir a presença das gramíneas C4 mesmo sem a preservação da planta.

A última peça do quebra-cabeças são os fósseis de um primata de grande porte (com mais de 30 kg) chamado Morotopithecus. Também com cerca de 20 milhões de anos, ele foi identificado pelos autores dos estudos num sítio paleontológico em Uganda e apresenta duas características muito importantes.

Primeiro, tudo indica que seu tronco era ereto, como o de chimpanzés e gorilas atuais, o que sugere fortemente que ele pertence ao grupo dos grandes símios. (Basta comparar a postura de um chimpanzé com a de um macaco-prego quando eles estão andando: o peito do grande símio fica levantado em relação ao chão, enquanto o macaquinho brasileiro tem uma postura 100% quadrúpede, não muito diferente da de um gato ou cachorro.)

Em segundo lugar, o Morotopithecus tem uma dentição que aparentemente está adaptada para o consumo de folhas. E, de quebra, a composição química de seus fósseis indica uma alimentação que incorpora vegetais que sofriam estresse hídrico —em outras palavras, relativa falta d’água, indicando um ambiente relativamente mais seco.

Embora o registro fóssil seja fragmentado, os dados que temos sobre a África Oriental ao longo dos últimos 20 milhões de anos são bastante bons. E não temos nenhuma evidência fóssil de postura bípede antes de uns 7 milhões de anos atrás. Então, é improvável que essa postura tenha evoluído muito gradualmente ao longo de todo esse período. Entretanto, podem ter ocorrido múltiplos experimentos evolutivos independentes relacionados ao tronco ereto envolvendo grandes símios

Laura MacLatchy

Coordenadora do estudo na Universidade de Michigan

Juntando todos esses dados, os pesquisadores propõem que a postura típica dos grandes símios teria evoluído, de início, justamente para enfrentar os novos habitats, permitindo que eles subissem e descessem das árvores com mais facilidade. Por outro lado, a dentição deles, de início, seria útil para se aproveitar de folhas e matéria vegetal mais seca, com menos dependência de frutas, por exemplo.

Isso não necessariamente significa uma linha direta com a evolução da postura bípede, que seria exclusiva dos hominínios como nós, explicou Laura MacLatchy à Folha.

"Embora o registro fóssil seja fragmentado, os dados que temos sobre a África Oriental ao longo dos últimos 20 milhões de anos são bastante bons. E não temos nenhuma evidência fóssil de postura bípede antes de uns 7 milhões de anos atrás", diz ela. "Então, é improvável que essa postura tenha evoluído muito gradualmente ao longo de todo esse período. Entretanto, podem ter ocorrido múltiplos experimentos evolutivos independentes relacionados ao tronco ereto envolvendo grandes símios."

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