Descrição de chapéu The New York Times genética

Chance de o DNA ser extraído do ar preocupa especialistas em privacidade

Pesquisadores da vida silvestre refinaram as técnicas para recuperar o DNA ambiental, aumentando as discussões sobre a ética do procedimento

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Elizabeth Anne Brown
The New York Times

David Duffy, geneticista da vida silvestre na Universidade da Flórida, queria apenas uma maneira melhor para identificar doenças em tartarugas marinhas. Então ele começou a encontrar DNA humano em todos os lugares onde olhava.

Na última década, os pesquisadores da vida silvestre refinaram as técnicas para recuperar o DNA ambiental, ou eDNA —vestígios de material genético que todos os seres vivos deixam para trás. Uma ferramenta poderosa e barata para ecologistas, o eDNA está por toda parte —flutuando no ar ou permanecendo na água, na neve, no mel e até mesmo na sua xícara de chá.

Os pesquisadores usaram o método para detectar espécies invasoras antes que elas assumissem o controle, para rastrear populações silvestres vulneráveis ou secretas e até mesmo para redescobrir espécies consideradas extintas. A tecnologia eDNA também é usada em sistemas de vigilância de águas residuais para monitorar o vírus da Covid e outros.

Ilustração mostra uma tartaruga marinha nadando sendo observada por um olho gigante
A pesquisa de DNA ambiental ajudou na conservação, mas os cientistas dizem que sua capacidade de coletar informações sobre populações e indivíduos humanos representa perigos - Isabel Seliger/NYT

Mas o tempo todo os cientistas que usavam eDNA estavam silenciosamente recuperando montes de DNA humano. Para eles é poluição, uma espécie de captura secundária do genoma humano que confunde seus dados. Mas e se alguém decidir coletar eDNA humano de propósito?

Novas técnicas de coleta de DNA são "um atrativo" para os agentes da lei, diz Erin Murphy, professora de direito da Escola de Direito da Universidade de Nova York especializada no uso de novas tecnologias no sistema jurídico criminal. A polícia adotou rapidamente ferramentas não comprovadas, incluindo o uso de DNA para criar esboços de um suspeito baseados em probabilidades.

Isso pode representar dilemas para a preservação da privacidade e das liberdades civis, especialmente porque o avanço tecnológico permite que mais informações sejam coletadas de amostras cada vez menores de eDNA. Duffy e seus colegas usaram uma tecnologia prontamente disponível para ver quanta informação poderiam extrair do DNA humano coletado do ambiente em diversas circunstâncias, como em cursos d'água ao ar livre e no ar dentro de um edifício.

Os resultados de sua pesquisa, publicados na segunda-feira (15) na revista Nature Ecology & Evolution, demonstram que os cientistas podem recuperar informações médicas e ancestrais de fragmentos minúsculos de DNA humano remanescentes no ambiente.

Especialistas em ética forense e juristas dizem que as descobertas da equipe da Flórida aumentam a urgência de regulamentos abrangentes de privacidade genética. Para os pesquisadores, isso também destaca um desequilíbrio nas regras em torno dessas técnicas nos Estados Unidos —é mais fácil agentes da lei utilizarem uma nova tecnologia semipronta do que pesquisadores científicos conseguirem aprovação para estudos para confirmar se o sistema funciona.

Ilustração mostra um olho gigante observando moléculas de DNA em uma região com prédios ao fundo
Isabel Seliger/NYT

De lixo genético a tesouro genético

Está claro há décadas que fragmentos de nosso DNA cobrem o planeta como lixo. Isso simplesmente não parecia importar. Os cientistas acreditavam que o DNA no ambiente era muito pequeno e muito degradado para ser recuperado de forma significativa, muito menos ser usado para identificar um indivíduo humano, a menos que viesse de amostras distintas, como uma mancha de sangue ou um objeto que alguém tocou.

Os pesquisadores da vida silvestre aprovaram o DNA ambiental de qualquer maneira porque estão procurando apenas por segmentos muito pequenos de DNA —escaneando o que eles chamam de códigos de barras que identificarão as criaturas numa amostragem ao nível de espécie. Mas depois de encontrar níveis "surpreendentes" de eDNA humano em suas amostras enquanto monitoravam doenças em tartarugas marinhas da Flórida, Duffy e sua equipe decidiram obter uma imagem mais precisa da condição do DNA humano no meio ambiente e ver quanta informação ele poderia revelar sobre as pessoas em uma área.

Como prova de conceito num de seus experimentos, os pesquisadores colheram uma amostra de água de um riacho em St. Augustine, na Flórida. Então alimentaram o material genético da amostra por meio de um sequenciador de nanoporos, que permite aos pesquisadores ler trechos mais longos de DNA. O que eles usaram custa cerca de US$ 1.000 (R$ 4.911), é do tamanho de um isqueiro e se conecta a um laptop como um pen drive.

Das amostras, a equipe recuperou muito mais DNA humano legível do que o previsto. E à medida que o conhecimento sobre a genética humana se expande a análise, até mesmo de amostras limitadas, pode revelar uma riqueza de informações.

Os pesquisadores recuperaram DNA mitocondrial suficiente —passado diretamente de mãe para filho por milhares de gerações— para gerar um instantâneo da ancestralidade genética da população ao redor do riacho, que combina aproximadamente com a composição racial relatada nos últimos dados do censo para a área (embora os pesquisadores observem que a identidade racial é um fraco substituto para a ancestralidade genética). Uma amostra mitocondrial estava suficientemente completa para atender aos requisitos do banco de dados federal de pessoas desaparecidas.

Vigilância e perícia

Anna Lewis, pesquisadora de Harvard que estuda as implicações éticas, legais e sociais da pesquisa genética, disse que o DNA ambiental não foi amplamente discutido por especialistas em bioética. Mas será, depois das descobertas de Duffy e seus colegas.

A tecnologia focada no eDNA, disse ela, poderia ser usada para vigilância de certos tipos de pessoas —por exemplo, pessoas com um histórico ancestral específico ou com condições médicas ou deficiências específicas.

As implicações de tais usos, concordam os pesquisadores, dependem de quem está usando a tecnologia e por quê. Embora amostras de eDNA agrupadas possam ajudar pesquisadores de saúde pública a determinar a incidência de uma mutação que causa uma doença em uma comunidade, essa mesma amostra de eDNA pode ser usada para encontrar e perseguir minorias étnicas.

"Isso fornece uma nova ferramenta poderosa para as autoridades", disse Lewis. "Acho que internacionalmente há muitos motivos para se preocupar." Países como a China já realizam rastreamento genético extenso e explícito de populações minoritárias, incluindo tibetanos e uigures. Ferramentas como a análise de eDNA podem tornar isso muito mais fácil, disse ela.

O quanto a pesquisa de eDNA também será um campo minado ético dependerá da extensão em que é possível identificar um indivíduo. Em algumas situações, isso já é realizável.

O tipo de dados genéticos que Duffy recuperou de locais públicos não funcionaria com os métodos que a polícia dos Estados Unidos usa atualmente para identificar indivíduos, disse Robert O'Brien, biólogo forense da Universidade Internacional da Flórida e ex-analista de DNA de laboratório criminal.

Quando os analistas de DNA da polícia comparam uma amostra da cena do crime com um suspeito, eles examinam 20 marcadores espalhados pelo genoma humano que são rastreados pelo Sistema Combinado de Índice de DNA do FBI, ou Codis, disse O'Brien. Esses marcadores são úteis apenas se houver certeza de que vários deles vêm da mesma pessoa e, como os fragmentos de eDNA estudados por Duffy não podem capturar mais de um marcador por vez, um local público como o riacho da Flórida se torna um terrível pesadelo.

No entanto, pesquisadores forenses sugerem que a identificação individual do eDNA já pode ser possível em espaços fechados onde estiveram menos pessoas. Em outubro, uma equipe do centro de pesquisa forense do Hospital Universitário de Oslo (Noruega) testou uma nova técnica para recuperar DNA humano de amostras de ar e conseguiu construir perfis Codis completos de DNA transportado pelo ar dentro de um escritório.

Quem tem acesso quando o DNA está disponível?

Nos Estados Unidos, as regras variam muito sobre quem tem permissão para coletar e analisar o DNA. Cientistas universitários que desejem aprender mais sobre eDNA humano devem justificar o escopo e as preocupações com a privacidade de seus estudos em um processo imperfeito envolvendo conselhos de ética de suas instituições, que podem limitar ou rejeitar experimentos.

Mas não existem barreiras de proteção para os agentes da lei que estejam experimentando uma nova tecnologia.

"Existe um desequilíbrio em quase todos os sistemas do mundo entre o que a aplicação da lei pode fazer, versus pesquisa financiada publicamente, versus empresas privadas", disse Barbara Prainsack, professora da Universidade de Viena (Áustria) que estuda a regulamentação da tecnologia de DNA na medicina e na medicina forense.

Alguns países, incluindo a Alemanha, têm uma lista verde aprovada de tecnologias e formas de evidência que os órgãos judiciais podem usar, mas é exatamente o contrário nos Estados Unidos.

"É um faroeste total, um vale-tudo", disse Murphy. "O entendimento é que a polícia pode fazer o que quiser, a menos que seja explicitamente proibido."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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