Alexandra Forbes

Jornalista, escreve sobre gastronomia e vinhos há mais de 20 anos. É cofundadora do projeto social Refettorio Gastromotiva e autora de livros de receitas.

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Descrição de chapéu Coronavírus

Passada a pandemia, passará também a onda de solidariedade

A obssessão coletiva de cozinhar para os outros, as doações e os vouchers de bares sumirão junto com o isolamento

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Tem muito fumante que jura pela mãe e pelos filhos que vai largar o cigarro quando o médico dá o diagnóstico de câncer no pulmão —e volta a fumar depois de curado. Bêbados fazem igual: meu tio prometia parar de beber uma garrafa de uísque por dia toda vez que via a morte de perto, mas passado o susto tornava a encher o caneco.

Achei graça na pesquisa da empresa AMC Global divulgada no dia 9 que diz que 38% dos americanos —vorazes consumidores de fast-food e comida processada e importada dos quatro cantos do mundo— passarão a apoiar mais os produtores e negócios locais depois da pandemia. Vejam só que meigos eles se tornaram desde o confinamento e o isolamento social: 32% declaram que irão cozinhar mais em casa, enquanto 35% passarão mais tempo com a família. Por quanto tempo?

Quando eu era pequena, quando aprontava alguma coisa bem séria e estava morrendo de medo que descobrissem, eu me ajoelhava ao pé da cama, juntava minhas mãos em gesto de oração, baixava a cabeça e, com toda a solenidade do mundo, jurava a Deus que eu nunca mais ia fazer aquilo. Certa vez, meu pavor era tanto que jurei que se Ele me livrasse do castigo do meu pai eu doaria toda minha coleção de gibis para o meu irmão.

Às vezes eu escapava, outras vezes acabava tomando bronca pesada e olhando para a parede por mais de uma hora na frente de todo mundo, humilhação máxima. Mas aí quando passava o medo eu logo me arrependia da promessa. Claro, né? Minha coleção de gibis tomava metade de um guarda-roupa, não tinha preço! Então lá ia eu renegociar minha dívida com Deus e retomar minhas travessuras.

Este inferno que estamos vivendo parece cheio de boas intenções. O medo tem essa vantagem, faz a gente querer agir generosa e virtuosamente. De repente vi no meu WhatsApp um monte de milionários que têm casas em Trancoso doando cestas básicas para os mesmos pobres que, antes da pandemia, já viviam na miséria sem que quase ninguém ligasse. Ando soterrada sob uma avalanche de mensagens e emails de iniciativas —algumas desinteressadas, outras lançadas por marcas com marqueteiros espertos— querendo ajudar restaurantes, bares e mercadinhos a sobreviverem. Nunca vi tanta gente cozinhando, tanto em lives (infinitas! demasiadas!) como em restaurantes fechados que certos chefs transformaram em centros de produção de marmitas para necessitados.

É como se com gestos solidários e um retorno às nossas cozinhas a gente estivesse pedindo clemência. "Ô, Deus, não deixe meu sushi e meu boteco favoritos irem à falência, eu juro que doei produtos de limpeza e enlatados para a ONG da minha amiga! Ô, Deus, me poupe de pegar esse vírus, eu comprei dez vouchers de bares que estão em dificuldades! E ainda mandei minha empregada ficar em casa enquanto eu faço almoço e lavo louça todo dia!"

Eu me sinto um pouco como aquela morte de carne e osso que aparecia nos meus gibis, vestida toda de preto, encapuzada e com uma foice na mão. Sou a mensageira de uma mensagem que ninguém quer ouvir. Nem as doações de cestas básicas, nem as marmitas distribuídas nas favelas e nem as campanhas vendendo vouchers vão fazer grande diferença no macro. E a ajuda financeira vinda do governo, essa sim, considerável, não bastará. O buraco é grande demais, simplesmente. A quebradeira está por vir.

Milhares de garçons, cozinheiros, copeiros e pias —atendo-me apenas ao meu tão caro universo da restauração— estão sendo demitidos esta semana. E semana que vem vai ser igual. Uma pesquisa da consultoria Api & Young afirma que a grande maioria dos franceses pretendem comer fora depois da pandemia com a mesma frequência de antes. Deus queira que no Brasil seja igual, que as pessoas voltem com força aos restaurantes no pós-Covid-19 —mas duvido.

Fiz uma enquete com meus seguidores no Instagram e 55% deles pretendem sair para comer depois da pandemia sem medo —mesmo em balcões de sushi e lugares de cozinha aberta— e 57%, gastando menos dinheiro do que antes. A recuperação será lenta.

Em meio a tanta incerteza, tenho algumas certezas. Primeiro, muitos restaurantes vão ficar pelo caminho, eles também vítimas do vírus. E segundo, com o tempo tudo vai voltar ao normal. Pode demorar, mas a gente vai retomar nosso comportamento habitual. O ser humano tem um poder incrível de apagar da consciência as agruras do passado. Somos como João Bobos, por mais forte que seja o soco sempre voltamos para o ponto de partida.

Com o fim da pandemia deixaremos de doar cestas básicas e de aplaudir médicos e enfermeiras das sacadas dos apartamentos. Desinfetar celulares, talheres e maçanetas será visto como mania só de gente paranoica. Gradualmente, voltaremos a comer e beber com família e amigos em bares e restaurantes e perderemos o medo do contato humano. Estas semanas intensas que passamos pensando nos mais vulneráveis que sentem dor e fome, anseando pela multiplicação dos leitos de UTI e preocupados com a falta de água e sabão nas favelas vão se distanciar pouco a pouco até virarem um pontinho lá no fundo da memória.

Até que, daqui a poucos ou muitos anos, algum novo terror, seja guerra ou pandemia, vai vir nos infernizar.

E aí jornalistas como esta que vos escreve e especialistas nisso e naquilo irão dizer que o pior burro é o que não aprende, que a pandemia de 2020 deveria ter nos servido de lição, que deveríamos estar melhor protegidos para evitar o pior. Mas não, claro que não estaremos prontos nem preparados quando vier a próxima tragédia global. A história é prova de que a raça humana tem memória curta e tendência a repetir erros do passado.

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