Alexandra Forbes

Jornalista, escreve sobre gastronomia e vinhos há mais de 20 anos. É cofundadora do projeto social Refettorio Gastromotiva e autora de livros de receitas.

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Chefs ousados sairão vivos da pandemia, mas os que só se lamentam perecerão

Jean-Georges Vongerichten reabre restaurantes na China com termômetros na porta e aposta em delivery de alta gastronomia

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Sabe quando a gente sente, numa conversa telefônica, que a pessoa do outro lado da linha está sorrindo enquanto fala? Ontem entrevistei um dos chefs mais poderosos da atualidade, o francês Jean-Georges Vongerichten, que tem 40 restaurantes ao redor do mundo, e me espantei com seu otimismo e bom humor.

Como para milhões de pessoas, o confinamento está sendo uma barra pesadíssima para ele, que mora em Nova York –a cidade mais destroçada pela pandemia. Só nos Estados Unidos, ele teve de suspender os contratos de trabalho de 1.800 funcionários. Seus negócios não têm data para reabrir e, a cada dia, a conta fica mais cara. Mas, se o vírus está tentando jogá-lo do alto de um telhado, ele, gato de sete vidas, pretende aterrissar de pé e vivinho da silva.

“Você não vai acreditar, mas dos meus restaurantes, os únicos três que estão funcionando ficam na China", disse. Os chineses voltaram para comer sem titubear —mas de máscara, claro. No novo esquema, ele tem permissão de atender só metade da capacidade de cada um dos restaurantes, e desde que siga várias regras sanitárias bem rígidas.

Na entrada, mede-se a temperatura de todo mundo —tanto empregados como pagantes—, e não passa ninguém febril. Ele desenvolveu um menu digital supermoderno, que o cliente baixa pelo celular por meio de um código QR ao chegar, com fotos dos pratos e tudo mais. Até os vinhos são pedidos digitalmente, sem precisar interagir com o garçom. O pagamento também é feito pelo telefone, via WeChat (aplicativo muito popular na China).

Ao reservar um lugar, pode-se pedir que taças e talheres sejam postos só na hora que o cliente se senta à mesa, para garantir que tudo terá sido esterilizado e manejado com luvas. E todo mundo de máscara, claro. “Parece coisa de extraterrestre", diz Jean-Georges, achando graça.

O setor de bares e restaurantes está tomando mais porradas do que qualquer outro. Chefs e restaurateurs no Brasil e no exterior parecem desnorteados. Uns, furiosos, reclamam mais ajuda do governo. Protestam. Alguns deles cozinham e distribuem marmitas aos necessitados para aplacar a ansiedade: fazer o bem, afinal de contas, faz bem.

Outros ainda juntam-se a campanhas coletivas postadas nas mídias sociais de apoio a restaurantes e a pequenos produtores. Enfatizam a importância de ficar em casa e pedem apoio para o setor, mas não desprezam, em seus vídeos emotivos, o risco crescente de falência coletiva. Nem dão a fórmula de como fazer um restaurante sobreviver a essa crise. Minhas conversas com cozinheiros têm sido permeadas de tristeza, desalento e preocupação (os brasileiros têm muito mais razão em se preocuparem, pois não estão recebendo as ajudas bilionárias de governos como o francês e o americano).

Para Jean-Georges, não tem tempo feio. Quando perguntei qual era o nível de estresse dele com a situação dos seus negócios numa escala de um a dez, ele respondeu: "zero!". Isso considerando que ele tem 12 restaurantes em Nova York, cidade fantasma de ruas desertas onde não para de morrer gente.

Ele vê até um lado bom: como seu pluriestrelado restaurante Jean-Georges está fechado, finalmente tiveram tempo de trocar o carpete. "Fechamos todos os negócios aqui na cidade em 16 de março, justamente o dia do meu aniversário", disse. E ainda afirmou que a pandemia vai dar um belo presente aos restaurateurs: os funcionários manterão as cozinhas tão limpinhas quanto os hospitais.

Gracinhas à parte, ele não pretende engolir milhões de dólares de prejuízo sem brigar. Com outros chefs, inclusive os igualmente famosos Thomas Keller, Wolfgang Puck e Daniel Boulud, formou a coalisão BIG —Business Interruption Group, ou grupo de interrupção dos negócios— para forçar as companhias de seguro a indenizarem suas perdas.

Ele diz ter pago US$ 25 milhões às seguradoras nos últimos dez anos para se proteger caso seus negócios fechassem por motivo de força maior. A hora em que a tal força maior se materializou, as companhias de seguro, claro, fingiram-se de mortas e não quiseram pagar nada. A briga está correndo na Justiça, com ambos os lados fazendo lobby forte no Congresso americano e em cima de Trump.

Por falar em Trump, em seu afã de querer enfrentar a tempestade de frente, Jean-Georges acabou entrando numa fria. Aceitou, ao lado dos mesmos Boulud, Keller e Puck, um convite do presidente americano para fazer parte de um comitê de crise dos setores de alimentos e bebidas com o modesto nome de Formidável Grupo de Recuperação da Economia Americana, em companhia de CEOs de gigantes da alimentação industrializada, como Coca-Cola, Wendy’s, Subway, Kraft, McDonald’s e PepsiCo.

Obviamente, em suas duas semanas de existência, o comitê não resolveu absolutamente nada e os supostos salvadores da pátria mal se falaram. Quando levantei esse assunto, Jean-Georges logo desconversou.

A derrapada é pequena perto de tudo de bom que ele vem fazendo. Anda comprando o leite que os produtores do estado de Nova York não têm para quem vender para evitar que seja descartado e doando à ONG Food Bank, o Banco de Alimentos. Além disso, a empresa dele compra US$ 15 mil (cerca de R$ 82 mil) em alimentos por semana para a mesma organização.

"Você acredita que US$ 10 (R$ 55, aproximadamente) rendem 12 refeições para uma família de quatro?", pergunta. Ele tem um olho na filantropia e outro no negócio. "Meu time estava doido para voltar a trabalhar, então estreamos na semana passada as vendas de refeições para viagem no The Inn at Pound Ridge, um restaurante que eu tenho perto de Nova York”, diz.

“Sábado passado, eram tantos carros engarrafados esperando para pegar a comida que a polícia apareceu para botar ordem no trânsito!" No menu, tem muita comfort food, que é tudo o que as pessoas mais querem em tempos de crise. Vai desde lasanha, rigatoni com almôndegas, pizzas diversas e sopa de ervilha a cookies com chips de chocolate e muitos coquetéis e vinhos franceses de primeira para anestesiar a ansiedade.

Jean-Georges está longe de ser o primeiro chef a adaptar um restaurante para vender comida para as pessoas comerem em casa. Milhares de estabelecimentos brasileiros abraçaram essa mesma ideia com mais ou menos sucesso, como os paulistanos Evvai, Esther Rooftop, Jun Sakamoto e Imakay.

Só que agora, Jean-Georges pretende ampliar essa operação para o Mercer Kitchen e o seu mais premiado templo gastronômico, o Jean-Georges, ambos em Manhattan. Por mais que delivery e take out pareçam soluções óbvias —afinal, se Maomé não pode ir à montanha, é bom que a montanha aprenda a ir a Maomé—, o fato é que esse esquema funciona bem para o chamado “comidão”, mas para pratinhos delicados feitos com ingredientes luxuosos, nem tanto….

Lasanha? OK! Estrogonofe? OK também, mesmo que a batata palha chegue molenga. Mas quem terá coragem de pedir pelo Uber Eats chiquerias do menu do Jean-Georges como tiras de atum com molho de gengibre, vieiras com torradinhas de trufa negra ou foie gras caramelizado? Eu não sei, mas ele aposta que muita gente. Alta gastronomia abraçando o Uber Eats? Para Jean-Georges, não é hora de ter preconceitos, e sim de ir pra cima e arriscar.

Como todas as grandes crises da história —das duas guerras mundiais à grande recessão de 1929—, esta também fará hordas de mortos e feridos. Mas, ao mesmo tempo, desengatilhará, ao se dissipar, uma onda de empreendedorismo e inovação.

Platão já dizia: a necessidade é a mãe da invenção. Empreendedores corajosos e ousados como Jean-Georges, com forte poder de adaptação ao novo normal, sairão vivos, por maior que seja o tranco. Enquanto outros tantos, principalmente os que ficam pelos cantos, imóveis, definhando, lamentando-se e pedindo ajuda, perecerão pelo caminho. Assim sempre foi e assim será também desta vez. Vão-se os fracos, ficam os fortes. E segue o jogo.

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