Alexandra Forbes

Jornalista, escreve sobre gastronomia e vinhos há mais de 20 anos. É cofundadora do projeto social Refettorio Gastromotiva e autora de livros de receitas.

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Felicidade dói

Meu Zoom com Bruno Covas e a história de uma obra sem verba

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Minha filha de 13 anos acha graça em dizer que moramos em um castelo. O Château Marjosse, minha casa aqui em Bordeaux, não tem torres pontiagudas nem cara de castelo —mas não posso reclamar. É uma vinícola linda e verdejante com uma bela casa antiga de pedras no meio, rodeada de floresta cheia de bichos. Passei o pior da pandemia aqui neste sítio lindo, sozinha a maior parte do tempo, lendo, escrevendo, cozinhando e aumentando minha horta.

Logo que o governo francês deixou que os restaurantes reabrissem, fui almoçar fora com amigos no belíssimo vilarejo de Saint Émilion. Máscaras, só para entrar. Uma vez à mesa, nos sentimos livres, leves, soltos e felizes. O clima, tanto em Bordeaux como em Paris, é relativamente leve. Amigos já se abraçam, me dão dois beijinhos quando chegam aqui em casa para jantar. Primeiro dizem : "Ai, ainda tá proibido dar beijo, né?". Aí, já vindo para cima de mim com o biquinho apertado, fazem comentários do tipo “Ah, só hoje pode, né?". E… Muac! Muac!

Quando essa gente vai embora, rindo, de pileque e pança cheia, eu vou pro meu quarto e choro. Tenho chorado muito. Essa vida boa em Bordeaux — região que está passando relativamente ilesa pela pandemia, com poucos casos de Covid-19 — pesa na minha consciência. Não consigo engolir minha felicidade. Leio a Folha todas as manhãs e meu coração racha com cada notícia triste. Quando ajudo, doando um dinheirinho ali ou acolá para projetos sociais, o sentimento de culpa vai embora.

Aí volta. Sempre volta.

Viver no bem bom assistindo quieta aos capítulos da tragédia brasileira não é para mim. Dói demais. Resolvi, do meu jeito destrambelhado e afobado, ajudar.

Pensei: e se bolássemos um projeto que possibilitasse aos bares e restaurantes recuperarem pelo menos parte da receita perdida? E se os lugares que eles foram forçados a tirar do salão seguindo as regras de distanciamento social reaparecessem do lado de fora? E se eu implorasse ao prefeito de São Paulo para ele deixar transformar pedaços de ruas em extensões de bares e de restaurantes? Já comecei a imaginar como ficaria o asfalto transformado em boulevard cercado de jardineiras com plantas, gente comendo e bebendo em mesas espaçadas e rodeadas de verde. Risadas. Famílias felizes. No meu sonho, até os garçons mascarados sorriam, aliviados de poderem voltar ao trabalho.

Arregacei as mangas e comecei a ligar para amigos. "Gustavo, desenha de presente para mim uma intervenção urbana assim, assim assado, por favor, pra eu mostrar ao prefeito?”. Disso nasceu o projeto arquitetônico da Metro Arquitetos. Escolhemos começar por um pedaço do Centro especialmente carregado de bares, padocas, restaurantes e mercadinhos. Tem desde Casa do Porco e Z Deli ao PF Côco Verde e o Boi na Brasa. Todo mundo precisando de mais clientes, de refazer o caixa.

— Jana, ajuda a gente?

Não precisei nem de três minutos para convencer a chef Janaína Rueda, dona com seu marido Jefferson de quatro negócios naquele pedaço, a mergulhar de cabeça na nossa piração — ops! — nobre empreitada, digo. Com três ligações para amigos chegamos no Bruno Covas. Reunião marcada. Seria por Zoom, claro. Pouco tempo depois, veio o diagnóstico: ele estava com Covid-19! Quando Covas não desmarcou nosso Zoom, mesmo estando doente, começamos a ver a luz no fim do túnel.

Vou poupar vocês dos detalhes… Mas o fato é que vivo meus dias com medo de acordar e ver que era tudo um sonho. O prefeito nos deu um sim. Um amigo veio ao nosso socorro e doou o primeiro dindim para dar o start e encomendar as jardineiras.

Ocupa Rua. Assim batizei o projeto, achei bonito. Peguei a ideia do movimento nova-iorquino Occupy Wall Street.

Mas se os gringos foram às ruas protestar contra o capitalismo eu fiz o contrário. Corri até pegar impulso e saltei de braços abertos no precipício com a certeza de que apareceriam empresas que me salvariam antes de eu me espatifar lá embaixo. Salve, Heineken! Salve, Johnnie Walker! Salve, Magazine Luiza! Chegaram aos 45 segundos do segundo tempo, mas chegaram.

A obra começa em poucos dias e nossa complicadíssima planilha me diz que até meados de setembro um pedaço do Centro estará de cara nova e pronto para receber mais clientes e reaquecer a economia. Mas não tem jeito. Nem a planilha e nem a aprovação oficial da prefeitura espantam aquele meu medo de acordar e ver que era tudo um sonho.

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