Alexandre Schneider

Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Alexandre Schneider

Como é possível educar contra o machismo e a misoginia

A escola deve preparar as novas gerações para que entendam a diversidade e respeitem as diferenças

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Ela [repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo [pausa e risos] a qualquer preço contra mim”.

A insinuação de cunho sexual, propagada pelo presidente da República, é uma violência dirigida não apenas à sua destinatária, a jornalista Patrícia Campos Mello, mas a todas as mulheres brasileiras.

A frase, machista e misógina, não é a primeira desta natureza cunhada por Jair Bolsonaro. Há uma coleção destas datadas da época anterior à sua posse.

Mas na boca de um presidente da República esse tipo de violência contra a mulher ganha outro contorno, configurando falta de decoro e respeito pela liturgia do cargo, além de servir de estímulo a comportamentos semelhantes por parte de seus apoiadores.

“Você é mulher, Marta!”, disse a mãe de Marta Vieira da Silva quando a artilheira da seleção feminina de futebol, ainda menina, lhe pediu dinheiro para comprar uma bola de futebol. Futebol não é para meninas, dizia-se na pequena Dois Riachos, Alagoas. Marta foi chamada de sapatão, enfrentou o estranhamento da família e seguiu adiante com seu sonho.

Bolsonaro curva o pescoço, sorri e olha de soslaio, com segurança e pequeno grupo de apoiadores atrás
O presidente da Reública, Jair Bolsobaro, faz insultos à jornalista da Folha, Patrícia Campos Mello, durante transmissão de "live" para o Facebook, em portão do Palácio do Alvorada - reprodução, TV Globo

Patrícia é uma das jornalistas mais premiadas do Brasil. Corajosa, cobriu guerras e conflitos ao redor do globo e foi responsável pela reportagem que investigou os disparos ilegais de mensagens de WhatsApp na campanha de 2018, provocando a ira e a perseguição de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Marta é um patrimônio brasileiro. Seis vezes eleita a melhor jogadora de futebol do mundo, honrou a camisa dez de nossa seleção com sua arte, jogadas incríveis, garra e superação. Ao lado de outras colegas de geração colocou o Brasil no mapa do futebol feminino. É um exemplo para os desportistas brasileiros e também para as meninas que se iniciam em diversas modalidades desportivas.

Trajetórias distintas que simbolizam as de outras tantas. Seja na luta para conquistar um espaço ainda bastante reservado aos homens, seja quando “chegam lá” e são vítimas da violência simbólica, na forma de agressões preconceituosas ou misóginas nas redes sociais, no ambiente de trabalho e nos coletivos lotados.

Mais do que um comportamento desviante, esse fenômeno é um reflexo de nossa cultura. As meninas ainda se ocupam dos afazeres domésticos em maior grau do que os meninos, casam-se mais cedo, são as maiores vítimas de violência doméstica. A escola muitas vezes reforça e reproduz essa desigualdade, ao reservar espaços, brincadeiras e atividades distintas para meninos e meninas.

A conta chega, como demonstra o desequilíbrio de gênero na ocupação de espaços de poder públicos e privados ou em determinadas profissões, como é o caso das chamadas “ciências duras”, como a matemática e as engenharias, por exemplo. Ou em forma de mais violência —o feminicídio cresce.

A educação pode ajudar a formar pessoas mais tolerantes e empáticas em relação às diferenças de gênero. O tema é controverso e vem sendo politizado desde a década passada, deturpando seu significado. Incorporar a questão de gênero na escola não é dizer à criança o que ela deve ser. É ensinar a respeitar as escolhas individuais de cada um, sem discriminá-las.

Infelizmente durante a discussão da Base Nacional Curricular Comum este tema foi deixado de lado. Em diálogo com educadores da rede municipal de São Paulo, percebi que a questão provocava tensão constante nas escolas. Nossa equipe então decidiu articular os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS) ao Currículo da Cidade, experiência pioneira no mundo.

Os ODS são um conjunto de 17 objetivos e 169 metas a serem atingidas até 2030 pelos 193 países signatários da ONU  (dentre eles o Brasil) voltados ao desenvolvimento sustentável. O ODS 5 prevê o alcance de metas voltadas à igualdade de gênero e ao empoderamento de meninas e mulheres.

A articulação entre os ODS e o Currículo da Cidade de São Paulo permite que a igualdade de gênero seja tratada em diversas áreas de conhecimento. É uma ferramenta para os professores realizarem projetos que levem os estudantes a refletir sobre ela.

Há caminhos para as escolas tratarem da questão sem precisar articular os ODS ao currículo, como a organização de discussões livres em sala, a não separação de meninos e meninas em filas, o uso de outros critérios que não gênero para agrupar meninos e meninas em atividades e práticas desportivas e a reprovação a piadas preconceituosas, utilizando-as utilizar como mote de discussão mais ampla.

O Brasil já viveu ditaduras e a democracia, teve governantes à esquerda e à direita, mas pela primeira vez é governado por alguém que professa com orgulho o machismo e a misoginia.

Há os que apoiam essa conduta e os que fecham os olhos por conveniência. Como espaço de convívio público, a escola deve preparar as novas gerações para que entendam a diversidade, respeitem as diferenças e não ajam com preconceito ou discriminação de qualquer natureza.

O machismo e a misoginia não são “de direita” ou “de esquerda”.

Já foram suas vítimas personalidades distintas como a ex-presidente Dilma, a deputada federal Maria do Rosário, a atriz Regina Duarte, a jornalista Miriam Leitão, a ministra Damares Alves e muitas, muitas outras. Dada a doença infantil que nos acometeu, tendemos a ser coniventes dependendo do autor e da vítima, perpetuando uma segunda violência.

Precisamos aprender a chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. E que os princípios só nos servem quando precisam ser utilizados.

*

Este texto é dedicado à minha sobrinha Julia, que tem 11 anos e gosta de ir ao estádio de futebol com seu pai. Na esperança de que ela e as meninas de sua geração possam crescer em um país em que todas as mulheres não sofram com a violência real e simbólica ainda praticada contra elas no Brasil.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.