Alexandre Schneider

Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

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Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Vidas negras importam

Ser negro, jovem e pobre tem que deixar de ser grupo de risco

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"Atirou na Kombi e matou a minha neta. Foi isso. Isso é confronto? A minha neta estava armada, por acaso, para poder levar um tiro?”, disse o avô de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, morta quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, em setembro no ano passado.

“Ninguém tem o direito de entrar na casa de alguém e tirar a vida de um jovem de 14 anos. Arrancar um filho de dentro da gente não tem explicação. Você cria, ensina, dá amor, divide sonhos e tiraram ele de mim. Meu filho tinha sonhos, já sabia o que queria. Queria ser advogado e ele tinha condições para isso. Um filho com notas boas, sem notas vermelhas, um filho 100%.”

João Pedro foi morto em casa, brincando, durante uma operação da polícia federal em São Gonçalo, que cravejou a casa de seus pais com mais de 70 marcas de bala. O adolescente ficou 16 horas desaparecido depois que a polícia o levou em um helicóptero.

Familiares iniciaram uma campanha nas redes sociais a sua procura, mas encontraram o corpo do adolescente apenas na manhã do dia seguinte, no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo.

Que país nos tornamos que assiste a mais um menino preto de uma comunidade ser morto pelo Estado sem que se ouça sequer uma palavra ou ação das autoridades sobre o caso? Que em resposta gera notas de repúdio, manifestações em redes sociais —textos como esse— e depois se esvai, se transforma em mais um número na estatística de mortos por policiais, à espera de um novo caso?

A segurança pública, assim como a saúde e a educação, é um dos direitos sociais universais, previstos no artigo 6º da Constituição Federal. Deveria, portanto, ser garantida a todos, em todo o território nacional.

Em comunidades como a de João Pedro e em tantas outras, o direito à segurança é violado diuturnamente, seja pela ocupação da milícia, do tráfico ou pela guerra sem vencedores entre a polícia e as facções criminosas.

“Meu filho é um estudante, um servo de Deus. A vida dele era casa, igreja, escola e jogo no celular”, nos diz o pai de João Pedro. O quão simbólico é esse discurso, de um pai justamente indignado como tantos outros que enterraram seus filhos pelo mesmo motivo, agarrado às qualidades do filho morto, como se estas tornassem mais injustificável o que já o é.

Seguindo o rito diário, antes de me deitar fui ao quarto do meu filho de 12 anos dar-lhe um beijo. Poderia ser ele, pensei. Não. Não poderia. A loteria da vida o fez nascer branco, em um lar seguro dessa e de outras formas de violência.

A despeito de toda a nossa encruzilhada política, com um presidente que não esconde seu pouco apreço pela democracia e da soma de crises que se avoluma e nos exaure, é preciso manter a capacidade de indignação, a ira santa contra a injustiça.

Já são oito crianças mortas como João Pedro desde o ano passado só na cidade do Rio de Janeiro. Arrancadas de suas famílias enquanto brincavam, voltavam da escola, caminhavam com os irmãos em comunidades onde muitas vezes não há segurança, moradia digna, saúde, esgoto, água tratada.

Os tempos que virão não são alvissareiros. A pandemia chegou a um Brasil em crise, com a renda dos mais pobres em queda, desemprego, estados e municípios quebrados, alguns deles parcelando salários dos seus funcionários. Mais do que descortinar essas questões, a pandemia deve ampliá-los.

A sociedade tem reagido à pandemia de forma solidária, mas é preciso ir além, construindo uma agenda que realmente enfrente problemas estruturais da nossa sociedade, como a desigualdade e o racismo. Algo, como nos pede o poeta Drummond, “em que todos se reconheçam e que fale como dois olhos”. O sistema político, fragmentado e sem rumo, ainda não está pronto para isso.

Que a morte de João Pedro e de tantos outros nos coloque na posição de seus pais, familiares e amigos, nos levando além do necessário horror e repúdio. Que a indignação nos mova a não desistir de um Brasil possível, empático, solidário, justo, coeso. Que nos sirva para “acordar os homens e adormecer as crianças”. Ser negro, jovem e pobre tem que deixar de ser grupo de risco no Brasil.

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