Escritor e diplomata, mestre em direito (Harvard). Serviu na missão na ONU e no Chile, EUA, México e Japão. É autor de "Sergio Y. vai à América" (Cia das Letras).
Herança de grego
Em recente artigo na Folha, Paulo Vannuchi, ex-secretário de Direitos Humanos do governo Lula, defendeu que o Brasil acolha prisioneiros da base americana de Guantánamo. Eu concordo.
Guantánamo é a base naval mais antiga dos EUA no exterior. Sua simbologia associa imperialismo, Guerra Fria e, depois dos ataques de 11 de setembro, violação de direitos humanos. Foi estabelecida por um acordo leonino com os cubanos em 1903. Desde então, os EUA mantiveram controle sobre a área. Em 2002, o governo de George W. Bush construiu ali um centro de detenção infame pelos abusos que abrigou.
Quando eu trabalhava como diplomata em Washington, o tema do recebimento de prisioneiros de Guantánamo pelo Brasil foi suscitado algumas vezes. Naquela conjuntura, a possibilidade foi descartada. Avaliou-se que indicaria aceitação tácita da legalidade de Guantánamo e dos abusos que se perpetraram por lá.
Fazia sentido.
Só que a conjuntura internacional mudou. Hoje, quase ninguém discute que as violações aos direitos humanos cometidas pelo governo George W. Bush, no contexto da chamada guerra ao terror, foram equívocos de grandes proporções.
O presidente Obama recebeu essa herança de grego e precisa se livrar dela. Além da questão humanitária, trata-se de um irritante nas relações dos Estados Unidos com o mundo islâmico e com a América Latina, via Cuba. Obama chegou a anunciar o fechamento da prisão e a transferência dos detentos para os Estados Unidos, mas foi barrado pelo Congresso republicano.
Analistas políticos consideram que, se o número de detentos baixar a dois dígitos, as resistências do Congresso começariam a ceder.
Para que isso aconteça, porém, Obama precisa de amigos dispostos a receber detentos, esvaziar a prisão e minorar o erro que herdou.
Dos 780 presos de Guantánamo, 649 já foram transferidos para 55 países; 9 morreram sob detenção. Estima-se que existam, atualmente, 122 prisioneiros na base militar americana. Destes, pelo menos 26 poderiam ser transferidos para terceiros países imediatamente.
A adaptação de refugiados nunca é fácil, ainda mais quando se trata de gente que sofreu tortura e, sem ter sido condenada, viveu o suplício da prisão indefinida.
O Uruguai, que recebeu seis desses prisioneiros, enfrenta problemas com sua integração. Nesse processo, as dificuldades não podem ser subestimadas, porque, além de diferenças culturais enormes, essas pessoas carregam o trauma de anos de confinamento e opressão.
Ainda assim, valeria a pena recebê-los. Só o aspecto humanitário já justificaria.
Qualquer gesto que esvazie a importância ou a razão de ser de Guantánamo é meritório em si. Mas há ainda o ganho político.
No atual contexto das relações bilaterais com os Estados Unidos, o gesto seria visto com muita simpatia. Se inspirar outros países sul-americanos a fazerem o mesmo, melhor. É mais gente ganhando.
De resto, boa vontade nunca é demais, sobretudo quando, ao mesmo tempo, tira um ser humano da tortura que é estar preso sem razão.
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