Vamos à cena que rolou em uma das mais tradicionais rodas do Rio. O cantor puxou o já clássico "Mil Réis", de Candeia e Noca da Portela. Tudo ia bem até os versos "Tentarei te esquecer, perdida/ Perdida, porque não honraste um homem". Aí um grupo de meninas mandou parar: ali não havia nenhuma perdida. Obediente, a roda girou para outro samba.
A situação é cada vez mais comum e reflete a consciência de questionar a homofobia, o racismo e o machismo que, de maneira estrutural, estão presentes em expressões, piadas e canções populares. Alguns compositores e cantores até são levados a uma espécie de revisão artística, em que desfazem ou disfarçam o que tinham feito antes --emenda pior que o soneto. Em casos mais extremos ou nem tanto --às vezes, puro capricho--, os militantes põem em prática a cultura do cancelamento, isto é, o boicote ao artista ou à música nas redes sociais.
Gravado por Candeia (1935-1978) no esplêndido "Axé" --que fácil, fácil entra na lista dos dez maiores discos de samba de todos os tempos--, "Mil Réis" é mais uma entre zilhões de histórias de corno que enriquecem o cancioneiro do Brasil e do mundo. Mas, em sua versão original, não era assim. Aliás, era bem diferente. Recomendo à turma que vai logo cancelando as coisas a conhecer o relato de Noca da Portela, com quem conversei:
"Fizemos o samba a pedido da Clara Nunes, que queria uma exaltação à mulher. Fui à casa do Candeia e pus letra na melodia dele. A Clara, não sei bem por quê, não gostou. Então o Candeia, que era machão pra burro, pediu para mexer na letra, e eu, claro, concordei. O que antes era 'Tentarei te esquecer, sentida/ Sentida, porque tu não foste homem' passou a ser 'Tentarei te esquecer, perdida/ Perdida, porque não honraste um homem'. Assim ficou".
Até agora. A cantora Teresa Cristina vai gravar a versão recuperada.
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