Dia desses escrevi um texto narrando um fato que presenciei e me impactou muito. Ao descrever o diálogo, não titubeei por um instante sequer antes de tacar uns dois ou três “sic” —do latim sic erat scriptum, assim estava escrito.
Conteúdo publicado, recebi de um amigo a seguinte mensagem: “Da próxima vez, para registrar em escrita linguagem informal usada por terceiros sem referi-los, como é o caso, cancele o sic.” A observação me intrigou por semanas.
Jamais havia me passado pela cabeça que pudesse ter cometido alguma impropriedade ao usar a expressão. Tampouco era minha intenção desprestigiar o interlocutor expondo o seu dizer como errado, ou atacar o pensamento alheio. Lendo Gabriel Nascimento, descobri que foi exatamente o que fiz.
Ao cometer o que é descrito pelo autor como epistemicídio linguístico, a partir das obras de Sueli Carneiro e de Boaventura de Souza Santos, entendendo-se por epistemicídio o extermínio do pensamento do outro, estava eu a desapropriar o sujeito de seu direito de produção do saber.
O uso de sic, mais comum nos textos acadêmicos, é forma desabonadora de corrigir item sintático ou lexical no sentido de expô-lo como errado. Em textos jornalísticos, serve para corrigir falas dos entrevistados.
Incrível como a escrita é um objeto de poder que pode ser usado como ferramenta de dominação para distinguir quem não tem fluência gramatical. Impor o que é certo ou errado, independente do costume. Sobrepor o culto ao popular. Mas não é só isso.
Para além da superfície, o epistemicídio também exerce o papel de anular a possibilidade de compreensão de saberes tradicionais, que deixam de ser ouvidos, disseminados e compreendidos.
Lembrei-me das diversas línguas dos povos nativos do Brasil, conceituadas como dialetos frente à linguagem imposta pelos colonizadores. Quanta violência e sofrimento podem ser impelidos sem um toque no corpo físico. Afinal, assim estava escrito.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.