Ana Cristina Rosa

Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

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Ana Cristina Rosa

Assim estava escrito

Diversas línguas dos povos nativos do Brasil foram conceituadas como dialetos frente à linguagem imposta pelos colonizadores

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Dia desses escrevi um texto narrando um fato que presenciei e me impactou muito. Ao descrever o diálogo, não titubeei por um instante sequer antes de tacar uns dois ou três “sic” —do latim sic erat scriptum, assim estava escrito.

Conteúdo publicado, recebi de um amigo a seguinte mensagem: “Da próxima vez, para registrar em escrita linguagem informal usada por terceiros sem referi-los, como é o caso, cancele o sic.” A observação me intrigou por semanas.

Jamais havia me passado pela cabeça que pudesse ter cometido alguma impropriedade ao usar a expressão. Tampouco era minha intenção desprestigiar o interlocutor expondo o seu dizer como errado, ou atacar o pensamento alheio. Lendo Gabriel Nascimento, descobri que foi exatamente o que fiz.

Detalhe da palavra co-herdeiro escrita de dois modos em dicionário da Academia Brasileira de Letras, de acordo com a nova ortografia. A palavra esta escrita como: co-herdeiro e coerdeiro, sendo que a grafia certa é co-herdeiro
Detalhe da palavra co-herdeiro escrita de dois modos em dicionário da Academia Brasileira de Letras, de acordo com a nova ortografia. A palavra esta escrita como: co-herdeiro e coerdeiro, sendo que a grafia certa é co-herdeiro - Marcelo Justo 7.jan.2009/Folhapress

Ao cometer o que é descrito pelo autor como epistemicídio linguístico, a partir das obras de Sueli Carneiro e de Boaventura de Souza Santos, entendendo-se por epistemicídio o extermínio do pensamento do outro, estava eu a desapropriar o sujeito de seu direito de produção do saber.

O uso de sic, mais comum nos textos acadêmicos, é forma desabonadora de corrigir item sintático ou lexical no sentido de expô-lo como errado. Em textos jornalísticos, serve para corrigir falas dos entrevistados.

Incrível como a escrita é um objeto de poder que pode ser usado como ferramenta de dominação para distinguir quem não tem fluência gramatical. Impor o que é certo ou errado, independente do costume. Sobrepor o culto ao popular. Mas não é só isso.

Para além da superfície, o epistemicídio também exerce o papel de anular a possibilidade de compreensão de saberes tradicionais, que deixam de ser ouvidos, disseminados e compreendidos.

Lembrei-me das diversas línguas dos povos nativos do Brasil, conceituadas como dialetos frente à linguagem imposta pelos colonizadores. Quanta violência e sofrimento podem ser impelidos sem um toque no corpo físico. Afinal, assim estava escrito.

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