Ana Paula Vescovi

Economista-chefe do Santander Brasil

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Ana Paula Vescovi

Não há combate indolor à inflação

Escalada dos juros para conter o atual surto inflacionário é um remédio amargo, mas essencial para a retomada do crescimento sustentado

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A estabilidade de preços é essencial para sustentar o máximo nível de emprego e atividade econômica. Contudo, não existe combate à inflação sem alta relevante de taxas de juros e, portanto, sem indesejáveis efeitos colaterais: contração na atividade e aumento temporário de desemprego.

Essa foi a conduta adotada pelo Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos) sob o comando de Paul Volcker (1979 a 1987), e ainda hoje sabemos que a melhor escolha social ao longo do tempo é o controle permanente da inflação. O combate aos surtos traz custos sociais, ainda que temporários. Não o fazer implica aceitar a estagflação, com o agravante de acentuar a desigualdade de renda, perder coesão social e, no limite, alimentar regimes políticos autoritários.

Supermercado em Itaquera - Rubens Cavallari - 27.abr.2022/Folhapress

Não há meio-termo no combate à inflação; é essencial não deixar dúvidas sobre o engajamento da autoridade monetária. Nos anos 1980, depois de dois choques nos preços do petróleo e de uma sucessão de apertos monetários pouco convincentes, Volcker impôs um choque de juros nos EUA pelo tempo necessário para quebrar a inércia inflacionária.

Obviamente, o custo foi gigantesco —recessão entre 1981 e 1982, além da quebradeira nos países com alta dívida em dólares, caso típico na América Latina. Entretanto, abriu espaço para duas décadas de crescimento global sustentado.

O surto inflacionário atual teve como causa choques concomitantes, decorrentes da pandemia e, agora, da guerra entre Rússia e Ucrânia. A média dos preços internacionais de commodities subiu 50% em dólares desde 2020; mais de 80% em reais. Além da inédita injeção de estímulos, que provocou desvios de demanda, tem havido interrupções de cadeias produtivas e logísticas por lockdowns e questões geopolíticas. A combinação desse descasamento entre oferta e demanda com o excesso de liquidez global e com aumento do risco nos mercados de ativos traz maior complexidade para o trabalho das autoridades monetárias.

Os bancos centrais vêm fazendo seu papel, embora claramente atrasados no processo. Passada a fase inicial de crença de que a inflação seria temporária, ficou evidente que a alta dos preços se disseminou para salários e serviços.

Não faltam instrumentos de combate, mas estes são brutos. Como a desorganização das cadeias globais demora para ser corrigida, o remédio é conter a demanda por meio do aumento dos juros. Se as autoridades demonstrarem temer os custos sociais de uma política monetária fortemente contracionista, em vez de evitados, esses custos só serão prolongados e implicarão ainda mais sacrifícios sociais.

Nos últimos 12 meses, a inflação ao consumidor acumulou alta de 8,3% nos Estados Unidos; 8,1% na Europa; 9,7% na América Latina e 12,1% no Brasil. Para muitos, trata-se da primeira experiência de convívio com inflação próxima a dois dígitos. E, para os que a experimentaram, o nível atual de inflação traz à memória duas décadas de crescimento baixo, errático, poucas oportunidades e aumento de desigualdade.

Só depois disso o mundo colheu um período de crescimento sustentado.

A fartíssima liquidez injetada desde 2020 (14% do PIB global) ajudou a construir riqueza monetária artificial, que tende a ser destruída com a normalização monetária. Isso já começa a ocorrer em mercados de maior risco, como ações de tecnologia e criptoativos. Para os governos, no primeiro momento, a inflação ajuda a aumentar receitas públicas automaticamente e, ao contrário da desinflação, ofusca a dura realidade dos desequilíbrios fiscais estruturais.

Assim, os riscos do processo de desinflação global são imensos e dizem respeito à estabilidade dos mercados financeiros. Os bancos centrais têm conseguido convergir na tese do necessário combate à deterioração das expectativas inflacionárias. A evidência empírica sinaliza que os juros e a atividade são mais sensíveis às expectativas do que à inflação corrente. É pelo canal das expectativas que os produtores e trabalhadores buscam recompor preços e salários.

No Brasil, o BC começou mais cedo a subir juros, porque a inflação começou a piorar mais cedo. Se, de um lado, a taxa Selic, que chegou à mínima histórica de 2% ao ano, chegará a 13,5% ao ano na nossa visão, de outro, serão 13 meses com inflação em dois dígitos. Há medidas paliativas de desoneração em itens essenciais com preços regulados (combustíveis e energia elétrica), o que eleva o risco sobre as contas públicas e, em alguns casos, sobre o ambiente de negócios. Nesse ínterim, os preços de alimentos já acumulam alta de 30% desde agosto de 2020, atacando frontalmente o poder de compra da população de baixa renda.

Se acreditarmos na atuação firme da política monetária, será possível haver recessão no Brasil a partir do fim deste ano até meados do próximo. E ainda estaremos suscetíveis aos impactos do processo incerto de desinflação global.

Contudo, a recessão será tão menos aguda e mais passageira quanto mais convencidos estivermos de que não há combate à inflação sem dor. É papel dos governos optar sabiamente por políticas que amenizem o sofrimento da parcela mais vulnerável da população, mas sem remar contra a política monetária. Evitar uma correção da inflação ainda mais custosa do ponto de vista social depende essencialmente das escolhas públicas.

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