Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Anderson França

Puritanismo faz da vida privada do brasileiro um Xvideos hardcore

Repressão sexual entre nós, crentes, pode adoecer a sociedade se levada para políticas públicas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não sei quantos aqui se lembram daquelas barras de sabão, vulgo "sabão em pedra".

Minha mãe lavava roupa no tanque de cimento. Já era um tanque meio gasto, mas dava pra lavar roupa. E era meu ofurô, com quatro anos de idade. Entrava ali com um cachorro de borracha todo carcomido, ficava a tarde inteira, pelado, com o tanque cheio d’água. Eu descobri o que eu queria da vida muito cedo: piscina. Zero preconceito arquitetônico, pode ser uma caixa d’água da Eternit daquelas de fibra, antiga, que criava lodo no fundo, zero problema, parça.

Eu já tomei banho em tonel desses de ferro, de petróleo. Sempre tem um desses no quintal, enferrujado. O enferrujado dá mais sabor. Tu pega uma tarde de calor, enche o tonel de água, vive a vida. Minha mãe usava dois tipos de sabão em pedra. Um meio amarelo e um azul. Era da UFE, União Fabril Exportadora, que funcionava na avenida Brasil, hoje desativada, hoje altura da favela do Arará, passarela 5.

Sabão em pedra - Carol Guedes - 12.mai.2008/Folhapress

Esse sabão, amarelo, era o neutro. Não tinha cheiro gostoso, igual ao azul. Era simples. Neutro. Não incomodava.

 

De 1978, vem pra 2001. Eu fazia uns extra. Vendia revista, camiseta, sanduíche natural, entregava quentinha numa bicicleta no Méier e era o VICE-REPRESENTANTE LOGÍSTICO-COMERCIAL do Seu Jailson.

Seu Jailson.

Diácono de uma igreja no subúrbio, homem de óculos quadrados, topetão. Cantava todo domingo, hinos do Cantor Cristão. Usava gravata listrada, um paletó desbotado. Foi meu coach de venda e de logística de sabão. Seu Jailson vendia sabão em pedra, sabão em pó, água sanitária e uma parada chamada PASTA DA BÊNÇÃO.

Pasta da Bênção era uma pasta com cheiro de Sapólio, que você passava nas panela de alumínio toda cheia de craca de sujeira, esfregava com uma lixa industrial naval, jogava água fervente, ácido muriático, tempero de miojo, cantava um ponto de tranca-rua, vráu. Bagulho ficava quase limpo. Na próxima, limpa com mais fé.

Seu Jailson tinha a fonte dos produto de limpeza. Eu era apenas um aspirante a homem de negócios no ramo dos sabões, um segmento promissor. Ganhava comissão por venda de pacotes de sabão em quitandas ou lojas.

 

Nessa época, Seu Jailson fez uma aquisição arrojada: um computador 486, de segunda mão, no Jornal Balcão. Eu já procurei muito casal pra fazer ménage à trois no Balcão. Saudades. Não era Tinder, era um jornal que oferecia de tudo, de cano de escapamento pra motocicleta Agrale, a homem, 65 anos, higiênico, procurando mulher, até 38, situação financeira estável, para relacionamento. Tinder é limitado, só oferece sexo. Tinha que oferecer uns curso de biscuit, dar oportunidade pro povo, porque é ruim demais transar desempregado.

Seu Jailson. Crente, do orifício anal aquecido.

Logo que instalou os CDs do Windows 98, e pôs internet discada, veio falar comigo no MSN. Eu usava numa lan house. Aí, papo vai, papo vem, grandes conversas sobre a indústria da limpeza, Seu Jailson me pergunta se eu já, por acaso, tinha usado o sabonete, portanto, um produto de limpeza, para me masturbar, fortuitamente, mesmo sabendo que isso é um pecado. Eu respondi que não, na maior inocência. Porque sabonete deve arder a ponta da cabeça do pau. Ele discorreu por alguns minutos sobre a variedade masturbatória com produtos de limpeza. Condicionador, creme de banho, sabonete líquido, esponja de banho, e o mais avançado: xampu.

“Xampu, Seu Jailson? Mas não é a mesma coisa que…”

“Enfiado no cu.”

“OI?”

Seu Jailson foi direto ao ponto: 

"Bagulho é bater punheta, com o shampoo enfiado no cu.”

O.o

“E não é amostra grátis de motel, que vem num potinho do tamanho de um esmalte. É um xampu do tamanho do Aquamarine. Família.”

Aquamarine, embalagem tamanho família vigente em 2000.

Vocês não eram nascidos. Então: dois latão da Skol, um em cima do outro, passe silver tape. Pei.

Ali eu vi que Seu Jailson era hardcore para caralho. Batedor de punhetas com o Aquamarine no cu.

A questão é que eu aprendi uma coisa sobre Seu Jailson, e sobre boa parte de nós, crentes: a gente é sexualmente reprimido. E isso cria em nós comportamentos que, se levados para políticas públicas, podem adoecer a sociedade. Porque a gente é adoecido dentro da igreja. Aí a gente tenta resolver as repressões com mais repressão. Não pode punheta nem siririca, ou transar na juventude, só depois de casar. Ou seja, na melhor fase da vida para uma maratona olímpica de sexo, Jesus parava tudo que ele estava fazendo pra vigiar a biloca e a xereca da mocidade.

E tem a coisa do cu, né. Crente tem muito essa fixação em cu. As crentes do meu tempo negociavam o cu. Se você era um bom namorado, você ganhava uma linha de crédito, um limite especial, em resumo: podia comer o cu. Sexo na igreja não era sobre prazer, era sobre disputa de poder.

O ambiente crente é cheio de histórias de perversão. Mulheres infelizes em relações autoritárias. Homens que se pegam na encolha, dizendo que foram pro monte orar.

O Brasil virou esse momento do Seu Jailson. Uma vida regrada, de gravata. Homem de bem. Na vida pública, neutro. Igual ao sabão. Dentro, um Xvideos hardcore e desesperado.

Acho que a proposta é essa. Resumo, em três conceitos: Reprimir o prazer de viver. Encorajar a perversão. E no cu do brasileiro, um xampu tamanho família.

Como disse Tati Bernardi: transem. Jovens e velhos. Só de raiva. Resistência gozante. E vamo povoar a Terra de antifascista. Botar Paulo Freire em nome de filho. Eu vou, já que descobri, no meio do fervo da semana passada, que vou ser pai. Agora que enfim fui aprovado para um programa de fertilidade. 

Que venha o Carnaval. Com Jesus, negro. Com sexo, com amor livre.

Seremos ingovernáveis.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.