Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

Foi preciso sair do Rio para vencer o Rio

É mais fácil reunir direita e esquerda num grande acordão do que Leblon e Madureira

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A melhor coisa de morar fora do Rio é estar livre enfim do poder das redes que existem na zona sul. A zona sul manda no Rio, e perpetua a desigualdade que reina na cidade. Existe um sistema de dominação no Rio, que não existe em nenhum outro lugar que visitei. 

Não existe em São Paulo. A Vila Olímpia, os faria limers, o Jardim Europa não têm esse poder de criar redes exclusivas a ponto de impedir que você consiga oportunidades. São Paulo, em relação ao Rio, é muito mais democrática.

Isso não existe em Lisboa. Pasme, cidade que implantou no Rio a cultura colonial, e da corte. O Rio ainda se organiza como uma corte. Mas em Lisboa, isso não acontece como no Rio. Esses dias, eu fui ao teatro, e me encontrei com o presidente da república de Portugal, Marcelo Rebelo. O cidadão na maior de boas, acessível, foto com as vovó tudo. Aqui você não tem uma praia do Leblon, onde moram os vip. O sujeito pode ser o primeiro-ministro e ser teu vizinho. 

Assustador. 

Luana Piovani quer parecer vip nessa porra, morando em Cascais. Lá onde brasileiros bolsominions se aglomeram, e lá não mora só gente rica não. Até porque não tem Barra da Tijuca fora do Brasil. Esse devir de consumo, essa estátua da Liberdade, esse Jeep com tração nas quatro rodas para andar em engarrafamento na Ayrton Senna, isso o mundo não quer copiar não. A Barra é que copia Miami. 

Miami tá cagando e dançando zouk pra Barra. Lá até morador de rua anda com camisa da Tommy Highfilger, porque lá essas camisa é que nem promoção da Casa do Biscoito no Méier. 

Tem uma classe média alta no Brasil cafona pra caralho. Acho é pouco tacarem fogo na estátua daquele velho safadonauta. Troço horroroso, uma sanha idolátrica, uma bateção de continência pra americano, os americano não tão nem aí pra nós, Bolsoranha.

Eles joga um míssil na residência de certa pessoa que ocupa um certo cargo público, que por acaso também mora na Barra, vizinho de certo miliciano assassino de vereadora, ninguém vai sentir tua falta, sal nesse rabo. O Brasil só tem munição pra uma hora de guerra, não tem condição da intervir no Irã, que lá não se pinta meio-fio. Exército brasileiro é a maior escola de figurante de filme de Chuck Norris, os cara saca os pincel pra pintar parede com cal, tinha que ter uma parada tipo Olimpíada do Quartel da Galinhagem, os paquistanês ia vencer com marcha exótica de bater o pé no chão, matando umas formiga de oito metro de altura e nós ia ganhar campeonato de pintação de muro. 

Nova York não tem as redes de costa quente que tem no Rio. O Brooklyn é o coração cultural de lá. O Harlem e o Queens dominam narrativas. Mesmo quem mora na cereja do bolo, em Manhattan, não bota chinfra de dono da cidade, se fizer isso, já vem um Spike Lee dando uma tesourada na sua cara. 

A zona sul concentra todas as principais redes de trabalho, os privilégios, as indicações, os QIs, as famílias, os filhinhos, os herdeiros, os melhores empregos, e se você não estudou no Marista, não foi pra Disney, não mora em Ipanema, não virou um jovenzinho do PSOL com passaporte carimbado em mil países, você é só mais um filha da puta que trabalha, morre, e não vai ser lembrado. 

Isso, inclusive, me faz pensar no quanto Tony Tornado me representa, e Chico, não. Eles são exatamente o exemplo do que é o Rio. Na verdade, o Lulu cantava: “só falta reunir a zona norte à zona sul”. 

Ilustração 'zona norte'
Ilustração 'zona norte' - Reprodução

É mais fácil reunir direita e esquerda num grande acordão do que Leblon e Madureira. Todas as melhores oportunidades ficam num pedaço da cidade, onde historicamente as elites investiram para privilegiar ex-senhores de engenho. Até os portugueses que já moravam no Rio, quando caiu a monarquia, só encontraram lugar pra viver nos subúrbios, vendendo vassoura, pão, sendo um dos grupos fundadores da identidade suburbana carioca, com negros e nordestinos. 

Essa treta sobre Tornado é que ele é zona norte pra caralho. Vendeu amendoim, foi soldado em Deodoro, traficou maconha e pó no Harlem, foi pra guerra de Suez, foi preso pelo Dops porque fez o gesto dos Panteras Negras. Ele não é reconhecido pela zona sul porque é autêntico, e não um branco dos olhos azuis que se apropria das realidades que nunca viveu, mas é de família nobre.

O maior trunfo de Tornado é ser livre, livrão, dos sistemas de dominação dessa burguesia carioca. Cidade partida, que anda sem rumo, sem utilidade pro país, e sem perspectiva. Estar livre disso é talvez a melhor sensação que um suburbano pode ter. Eu precisei sair do Rio pra conseguir algo na vida. Dentro daquela cidade, eu sigo o destino de todo suburbano: plateia dos bonitos do calçadão. 

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