Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Autoestima Jardim Botânico e as raízes do racismo que não enxergamos

Conheço muitos Spike Lee, vou citar pelo menos uma: Ju Vicente

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A raiz de tudo é a autoestima da burguesia brasileira.

Eu não acho que deva citar todos os nomes, eu prefiro manter uma distância nessa coluna, já tão conhecida pelo meu português safado e meu mar Adriático de rancor. Eu só tenho ódio e rancor, eles disseram.

Mas a raiz do problema é a seguinte: aos seis anos, a criança vai fazer seu primeiro concerto de violino na escola do Leblon. Toca mal pra caramba. As professoras sabem, mas a mensalidade da escola é coisa de US$ 800, o que no Brasil tá valendo R$ 3 bilhões, até desta coluna.

Dar aula pra criança rica, de pai rico, de classe média alta, que mora nas áreas nobres, já é uma forma de pagar os pecados. Porque o salário do professor de criança rica não tem muita diferença com o do professor da Pavuna. Tem não, acredite. Você nunca vai ver um professor de Land Rover. Aquela Land Rover é do pai do aluno.

Cenário de "Parasita", mermão.

Uns muito ricos, outros servindo, divididos por uma linha invisível, em espaços onde o silêncio sobre o péssimo gosto e a falta de talento dos mais privilegiados define as relações.

A criança toca o violino e chega a manteiga derrete.

Dá vontade de voltar pra casa gritando Lucifér dentro do ônibus, por três horas.

Aí você chega no morro, tem um menor gravando clipe de funk, monetizando no YouTube, impactando DJ na Europa, mas o menor estuda na escola estadual que tá fechada por causa do tiroteio. Favela não precisa de corona pra ter a vida alterada, interrompida e destruída. Basta a PM.

Ocorre que essa criança, ruim pra caramba no violino, cresce.

Vira um adolescente que experimenta de tudo um pouco. Não termina nada. Toca guitarra, fala mandarim, dança hip-hop, vira ator, pinta quadro, grava filme, ganha prêmio, tudo igual a sua cara.

É assim. O rio corre pro mar.

Pessoas privilegiadas não precisam fazer força. É fazer um pouco, mediocremente, que a rede ajuda. Os pais, os amigos dos pais, a influência, a força das redes, a força do dinheiro, o sobrenome.

Spike Lee no Brasil, em foto de 2013 - Zô Guimaraes/Folhapress

Conheço muitos Spike Lee. Eu disse que não queria citar nomes, mas um pelo menos eu vou citar: Ju Vicente. Ava DuVernay segue essa jovem, em suas redes. Ju é uma das grandes diretoras negras desta geração. Não precisa ser amigo, gostar do trabalho dela, nada disso, é até bom até que você nem seja influenciado por isso, basta apenas ser justo. Ju Vicente é uma diretora brasileira, negra, competente e capaz, conhecida fora do Brasil, que poderia dirigir o filme sobre Marielle Franco.

Mas não.

“Não escolhi a história, a história que me escolheu”, disse Antonia Pellegrino.

Pronto, citei os nomes. Ah, falta o Padilha, esse jogador.

O que me assusta nisso tudo é que essas pessoas, com vasto repertório sobre o Brasil, ainda não entenderam uma vírgula do que pregam nas redes sociais: que elas são as crianças com o violino, que tiveram tudo e que deveriam ceder seus lugares, sobretudo se estamos falando da história da primeira moradora do Complexo da Maré eleita vereadora e marco político mundial. Não há um lugar no mundo em que não se saiba quem é Marielle.

O Brasil mente pra si mesmo, se apropria de discursos e assim vamos levando.

Não somos verdadeiros, por isso mesmo merecemos tudo de ruim que está nos acontecendo. Somos um povo muito racista, muito ruim. Seja no NorteShopping, seja na Antifa Filmes, seja no PSOL, seja na igreja, seja na rua, seja em casa.

O Jardim Botânico tem essa autoestima.

Vocês apenas se esqueceram de que Spike Lee também não conhece ninguém como ele no Jardim Botânico. Mas, um rolê com ele na Maré, ele encontraria uns 50 que ele chamaria de mestres.

A coisa está enraizada. Esse pessoal passou a vida ouvindo elogios e vive numa bolha onde ninguém chega pra eles e diz que deveriam arrumar um emprego num estande de empada, então eles acreditam que são quem pensam que são.

Não adianta gritar, não.

Vai ter série sobre Marielle escrita por branca, dirigida por branco, com olhar deles, gestão deles e muito discurso de justificativa. Eles que criaram o pano que se passa hoje na própria esquerda.

Talvez até chamem uma mulher branca pra interpretar a vereadora, morta num país onde uma mulher negra tem duas vezes e meia mais chances de morrer que um homem branco, ainda mais se esse homem tem seguranças.

Isso não deveria assustar mais ninguém

É olhar pro futuro e acreditar nos que estão na margem de tudo.

O pior é sentir, no fim desta coluna, que não temos mesmo nem surpresa pra sentir.

O Brasil, se a gente conta, ninguém acredita.

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