Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

Não quero aplaudir Drauzio, quero ser Drauzio

Eu também vou escrever para a detenta que há oito anos não recebe visitas

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Acabei de ver Drauzio

Não teve jeito. Vocês falaram tanto que eu tive que ver.

Depois de constatar que na minha timeline todos os posts eram sobre ele, eu consegui um tempo, em pé no trem e comendo um sanduíche, pra ver o vídeo dele num celular.

Suzy Oliveira, detenta trans que foi entrevistada por Drauzio Varella
Suzy Oliveira, detenta trans que foi entrevistada por Drauzio Varella - Reprodução

Nas últimas 24 horas, a reportagem que ele produziu e que foi ao ar no último domingo (29) é um dos assuntos mais comentados do Brasil.

E quer saber?

Graças a Deus.

Drauzio estava lá, no Carandiru, entre os detentos, muito antes de qualquer um de nós saber emitir opinião, aprovar, ou cancelar pessoas. 

Ninguém mandou Drauzio ir. 

Ele foi, sozinho, porque sentiu que a vida lhe tinha sido boa. Sentiu os privilégios que teve. Sentiu a dor do mundo. Percebeu algo que a classe média alta brasileira não consegue perceber: que o mundo é dividido não entre esquerda e direita, preto e branco, mulher e homem, mas entre quem tem privilégios e quem não.

Na vida, ou você está do lado do Drauzio, que possui privilégios e pode ajudar pessoas, ou você está do lado das pessoas que não têm privilégios e por isso mesmo precisam de ajuda.

Ele foi devolver tudo o que recebeu.

Eu venho de um outro tempo.

Eu fui ajudado e formado por pessoas e educadores populares que iam pro campo. Que moravam em favelas, que conheciam algum tipo de opressão. Seja o racismo, seja o encarceramento, seja a solidão, a pobreza, a fome --a lista, no Brasil, é enorme.

Se você nasce numa periferia, a probabilidade de passar por uma destas coisas é gigantesca. 

Por isso Drauzio olha para as trans e travestis na sala e conclui que a cadeia sempre estará na vida delas. Porque é como se a sociedade as quisesse longe. E não apenas por serem trans, mas por serem pobres e negras, muitas vezes.

A gravidade que puxa o oprimido pra baixo é muito forte. 

A primeira vez que entrei num presídio, isso em 1998, foi pra acompanhar um grupo de missionários que levaram roupas para presos, no Complexo Penitenciário de Bangu. Eu tive alguns amigos presos por tráfico e roubo. Tenho um amigo de infância preso em Catanduva, por tráfico. Muitos outros morreram.

Sabe, o presídio é um lugar onde eu ouço mais alta a minha voz. 

Ali, dá pra ouvir a voz dos outros, mesmo que eles não falem.

Com o passar dos anos, o que chamamos de “ativismo” e “militância” saiu dos campos, das favelas, das ruas, dos presídios, dos hospitais, das escolas, e foi pro Twitter ou outras redes sociais. Um bom vídeo de YouTube monetizado, um post de Facebook com milhões de likes. 

E a discussão entre nós, sobre quem é mais puro. Alguém comete um deslize, todos a ele. Mas ninguém faz coleta de alimento, Ninguém mete a cara como voluntário num projeto. Só falamos. 

Ou aplaudimos.

Nesse caso, também temos apenas dois lados. Ou somos os que escrevem “militando”, ou somos os que aplaudem o post. No fim das contas, todos somos improdutivos.

Cada pessoa presa, naquela reportagem, foi um puxão de orelha em mim.

Tenho caminhado por Lisboa. Não sei se conhecem Lisboa a fundo, mas aqui tem favelas iguais às do Rio. Com migrantes, ciganos, africanos e árabes, praticamente abandonados. 

A Europa está dando errado. 

Tem um centro econômico, tem poder político. Bruxelas disputa com Washginton, Moscou e Londres hegemonia no Ocidente. Nós olhamos pra Europa e não imaginamos o tanto de pobreza e abandono que existe aqui. A Europa funciona pra quem é europeu, se muito. Mas pro migrante, refugiado e oprimido, não.

Decidi andar por Lisboa, agora como estudante de ciências sociais --comecei, com orgulho, essa semana, queria partilhar isso com vocês. Estou pensando em criar uma Pastoral da Cidade, onde posso ser novamente educador, pesquisador e promover acolhimento afetivo de pessoas sem qualquer privilégio.

Enchi a alma com o Drauzio, e saí, debaixo da chuva fria, pra mais uma caminhada nas periferias daqui e fui parar em Falagueira, depois na Cova da Moura. Eu não sei no que vai dar, se vou conseguir realizar algo pelas pessoas, mas Paulo Freire está comigo, e Drauzio também.

Mas a minha questão é: vamos seguir o exemplo de Drauzio ou nos limitar a aplaudir?

Vamos ser inspiração para nós mesmos ou vamos disputar qual dos nossos posts lacra mais? Drauzio fez escolhas. Ele levantou em muitas manhãs frias e foi, sem ninguém dar like, construir, de pouquinho em pouquinho, um refúgio para os seus atendidos.

As desigualdades de raça, gênero e classe se refletem nos presídios brasileiros. Seja no Nordeste, que além de superlotação há facções extremamente sanguinárias, que atuam com a anuência de muitos agentes envolvidos em esquemas de corrupção. Há de tudo no presídio. Lá o Brasil é muito Brasil. E foi pra lá, e não pra um congresso de medicina, que Drauzio foi.

Ver Drauzio foi um alívio, um sopro de afeto e lucidez em meio ao caos.

Mas você precisa se posicionar. Você sabe, eu já cobrei pessoas de se posicionarem. Mas eu também me cobro. E você precisa. Mas nem eu nem Drauzio somos mais especiais.

Como você, tenho contas que não foram pagas. Dores. Doença crônica, solidão e saudade. O mundo está desabando. Mas nós precisamos encontrar algo para fazer. Ensinar presos e presas a fazerem bolo. Maquiagem. Um desenho.

Qual foi a última vez que você visitou, se é que visitou, um presídio? Um leito terminal? Uma escola? A rua? As travestis, os palhaços que vendem água na rua, quando foi que você deu um abraço neles?

O Brasil precisa resolver sua dívida com o cárcere.

Daqui, do outro lado do imenso mar, um abraço, Drauzio. Você caminha comigo, nesse mundo de tantas encruzilhadas. 

Eu também vou escrever para a detenta que há oito anos não recebe visitas.

Este texto, que demorou a sair hoje, eu dedico pro Drauzio, pra Susy e pra todas as detentas daquela reportagem. 

E se você quiser escrever uma carta pra ela, eu te envio o endereço que circula na internet:

SUSY DE OLIVEIRA SANTOS
Centro de Detenção Provisória II – ASP
Willians Nogueira Benjamin de Pinheiros.
Av. Dra. Ruth Cardoso, 1501, Vila Leopoldina, SP, 05.310-000

Diante a opressão, peço licença a esta coluna pra fazer uma convocação a empatia, a solidariedade e ao afeto. Não podemos perder a esperança. 

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