Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

Jesus foi um homem negro morto pelo Estado, no alto do morro, na frente da mãe

E qual não foi minha dor, ao ver um vídeo de bolsonaristas, no domingo de Páscoa, dançando com um caixão e rindo

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Acho que essa é a primeira vez que não escrevo sobre a Páscoa.

Desde que escrevo e sou lido por muitas pessoas, agora até na Folha, é a primeira vez que não faço reflexão alguma sobre esse período.

Porque, seja a narrativa judaica, seja a cristã, a Páscoa ou o Pessach, são eventos que tiveram seu lugar no tempo e na história, em lugares no tempo e na história, e todos eles são distantes do tempo onde vivo e escrevo, no meu agora, no teu agora, nesse ponto da vida.

Eu consegui, por anos, escrever e reescrever sobre os dois eventos, porque de certa forma eu tinha uma segurança de estar num outro tempo, em que eu me sentia tranquilo, calmo, para falar das tragédias humanas em larga escala, como eventos distantes.

Não é mais assim.

Há pouco tempo, eu andava pelas favelas onde trabalhei, e nossa grande e fundamental tragédia era o extermínio de jovens negros mortos por violência letal na guerra contra as drogas, que, de maneira infrutífera, tantos governos tentaram implementar, até mesmo Lula e Dilma, e que custaram a vida de um povo historicamente oprimido desde a colonização das Américas.

O sangue negro é o combustível do capitalismo nas Américas. Os colonizadores tiraram nomes, patrimônios, histórias, culturas e futuros de milhões de africanos e, hoje, continuam a perpetuar esse massacre.

Essa era a tragédia visível para mim. Palpável, diária.

O que estou vendo hoje, porém, em termos de perdas de vidas, e em tamanho —e repare: estamos falando de um problema global—, isso que estou vendo, eu nunca vi. Já nem quero entrar na questão se é diferente de morte por tiro, ou clima, ou fome, ou vírus. Para a família que perde o parente, a morte tem sabor amargo, igualmente amargo.

É preciso olhar essas perdas, no olhar de quem enterra. Não apenas no olhar de quem analisa números ou teses.

A lágrima da mãe que enterra a filha morta por Covid-19 tem o mesmo sabor amargo da lágrima da mãe que enterrou sua filha, Marielle. A perda de Marielle, nós que a vimos agir no mundo, deve nos ensinar algo sobre lágrimas, empatia com a lágrima do outro.

O pastor Henrique Vieira lembrou, em mais essa Páscoa, que Jesus foi um homem negro morto pelo Estado, no alto do morro, na frente da mãe, pelos policiais que ocupavam a Judeia. Um homem de dores, conhecedor do pobre, do excluído, morto como um bandido, enterrado por seus amigos.

Tinha nome e sobrenome. Família. Mas foi jogado como um indigente, o tratamento dado aos corpos negros. Há quem diga que, se Jesus fosse branco, teria advogados metendo recurso até hoje, e nunca teria nem sido preso. Como não, e foi morto dessa maneira, essa é a maior prova de sua origem e cor. E causa.

Porque ele era, antes de tudo, pobre. E para o Estado, e para o mal, o pobre só pode ter um lugar: a cruz. A dor. A tortura.

O pobre não pode existir, senão naquele lugar de suplício. E ouvi isso uma vez, numa conversa com o reverendo Fellipe dos Anjos, num almoço em São Paulo, do qual me recordo até hoje. “Jesus ocupou o único lugar dado para um pobre ocupar no mundo: o lugar da dor. E o Estado não aceita que ele ocupe outro lugar.”

E isso, amigos, explica Bolsonaro indo à padaria.

Mesmo que ele morra, ele está pouco se lixando. Ele vai levar muitos mais pobres à morte antes dele. E ele se alimenta de caos, de sangue e de assassinato.

Bolsonaro, o capitão romano que gargalhava diante do Cristo morto diante da mãe. O Cão, em carne.

Mas quando Moisés liberta o povo do Egito, Deus, que até aquele momento era alguém distante de Moisés, disse que tinha chegado o tempo de julgar o Egito, e julgar os deuses do Egito, ou seja, julgar os VALORES POLÍTICOS E RELIGIOSOS daquele Estado que oprimia os escravos judeus.

Moisés foi o braço concreto de um Deus que disse "basta". Um basta à desigualdade promovida pelo Estado, contra oprimidos e escravizados. E na narrativa judaica, Moisés promove justiça e libertação. Com muitas dores. As dores que precedem a libertação.

Mas Faraó resistiu a isso e foi atrás desse povo em fuga, para matá-los, mesmo dizendo que libertaria, mesmo diante de dez grandes tragédias místicas. Faraó, cínico, dizia que aceitava a decisão de Deus, mas politicamente queria sangue e promoveu todos os meios para exterminar aquele povo.

O governante que não percebe que sua ignorância pode comprometer a vida de todos, pois no Egito não moravam apenas os judeus, mas os egípcios, comerciantes, artesãos, mães, pais, avós, pessoas que também sofriam nas tragédias repetidas semana a semana, diante de um homem cheio de poder e estúpido, que permanecia debochando de todas as mortes que viriam.

Pois temos em Bolsonaro Pilatos e Faraó, juntos.

E qual não foi minha dor, ao ver a jornalista Madeleine Lacsko, publicar em seu Twitter um vídeo de apoiadores de Bolsonaro, com camisas verde-amarelo, em plena avenida Paulista, no domingo de Páscoa, dançando com um caixão, e rindo, muito provavelmente das já mil mortes registradas por Covid-19 no país, segundo dados oficiais.

A dança da Morte. Se pá, já teve até artista pintando quadro com esse nome.

Então, diante disso tudo, eu não consegui escrever sobre a Páscoa, evento passado e distante. Eu estou dentro dela. Do momento mais duro, seja no Calvário, seja no Egito, a Noite da Morte dos Primogênitos.

Com pessoas temerosas de sair na rua. E outras se jogando, por birra. Porque a economia vai parar, e como se elas fossem durar muito. Um vírus que mata em 72 horas, e o cara preocupado com a Bolsa de Valores, e ele nem tem limite no cheque especial, quem dirá ação na Bolsa.

O papa rezando missa, sozinho. Andrea Boccelli cantando "Amazing Grace" na frente da catedral de Milão, sozinho. Eu, trancado em casa, olhando a rua vazia, debaixo de chuva, longe da minha família, vendo o meu país deslizar para baixo, sozinho.

Não.

Deixo para quem for escrever sobre a Páscoa daqui a 500 anos.

Porque com certeza, quando essa pessoa escrever sobre a dor, ela se lembrará de nós.

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