André Liohn

Fotojornalista especializado na cobertura de guerras, vencedor da medalha Robert Capa

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Racismo e antissemitismo foram os piores, mas não os primeiros males nazifascistas

Tendemos a acreditar que os regimes totalitários surgiram em torno dos dois conceitos, mas a verdade é mais complexa

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Temendo por sua vida, no dia 14 de novembro de 1938, exatos quatro meses após a publicação do Manifesto Fascista da Raça, a jornalista judia Margherita Sarfatti deixou sua casa perto do Lago de Como, na Itália, entrou em seu carro e pediu ao motorista que a levasse até a fronteira suíça. Além de alguns poucos pertences pessoais, em sua mala ela levava 1.272 cartas enviadas pelo homem que havia amado e acompanhado por 20 anos na construção da ideologia e do partido fascista: Benito Mussolini.

Tendemos a acreditar que o nazifascismo surgiu em torno do conceito de racismo biológico e do antissemitismo, mas a verdade é mais complexa.

Cena do documentário 'O Triunfo da Vontade', de Leni Riefenstahl, propaganda da Alemanha de 1935, que acompanha um gigantesco comício do partido nazista em Nuremberg
Cena do documentário 'O Triunfo da Vontade', de Leni Riefenstahl, propaganda da Alemanha de 1935, que acompanha um gigantesco comício do partido nazista em Nuremberg - Divulgação

Nas duas primeiras décadas do século 20, tanto na Itália como na Alemanha, esses movimentos reacionários ainda não haviam adotado o antissemitismo e a teoria do racismo biológico em seus programas e chegaram a receber apoio de intelectuais nacionalistas judeus que um dia seriam perseguidos por esses mesmos movimentos.

No caso do fascismo, o racismo biológico e as leis antijudaicas surgem com a aliança entre Hitler e o então ditador italiano, o ex-socialista massimalista Benito Mussolini, que, segundo estudiosos do fascismo como Luciano Dalla Tana e Renzo de Felice, decidiu adotar os conceitos por oportunismo político.

Até mesmo o filosofo fascista e ministro da Educação do regime, Giovanni Gentile, foi contrário à adoção do conceito biológico de raça e se opôs ao manifesto fascista publicado 16 anos depois da Marcha sobre Roma —a manifestação de natureza subversiva, organizada pelo Partido Nacional Fascista no dia 28 de outubro de 1922, visando um golpe de Estado ou pelo menos uma clara demonstração de pressão paramilitar capaz de levar Mussolini ao poder.

No livro de memórias "My Fault: Mussolini As I Knew Him" (Minha culpa: Mussolini como eu o conheci) Margherita Sarfatti, italiana de uma família judaica da aristocracia veneziana, que, além de amante, foi conselheira política de Mussolini e "ditadora das artes" durante os primeiros anos do regime, sustenta que o fascismo começou como uma ideia positiva que foi sendo distorcida ao longo dos anos.

No livro, escrito somente depois da morte do ditador, Sarfatti absolve o fascismo por todos os crimes hediondos cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, pela morte de sua irmã e cunhado, deportados da Itália para Auschwitz, pela destruição da democracia italiana e pelo estabelecimento de uma ditadura. A culpa, para ela, era exclusiva de Mussolini.

Na sociedade contemporânea, a questão racial tornou-se uma linha que define e, ao mesmo tempo, ofusca nossa percepção da realidade, nossa subjetividade, nossa moral e nossas relações sociais.

Criticado e penalizado por defender que partidos nazistas deveriam ter o direito de existir, o youtuber Monark foi defendido por intelectuais da ala liberal como o filosofo Luiz Felipe Pondé, o jornalista Joel Pinheiro da Fonseca e o deputado federal Kim Kataguiri. O argumento desses defensores é que sem racismo não há nazismo e que o ex-apresentador não havia defendido o conceito de superioridade racial, mas o direito de expressão de todos, inclusive de nazistas.

Na introdução do livro de Sarfatti, o historiador Brian R. Sullivan escreve: "Mussolini e Sarfatti expuseram suas almas um ao outro. Ela ouviu seus segredos, sabia quase tudo sobre as fraquezas ocultas de Mussolini, suas fragilidades humanas, seu comportamento grosseiro, suas superstições, seus mal-entendidos, sua ignorância sobre tantos assuntos científicos e médicos e sobre sua sífilis."

O racismo biológico e o antissemitismo não são a semente, mas um dos elementos que alimentam o pestífero modelo político nacionalista nazifascista. Não podemos esquecer que antes de adotar estes conceitos, os nazistas usaram como lema a Alemanha, e não os alemães acima de tudo.

O perigo de limitarmos o nazifascismo ao antissemitismo e ao racismo biológico, a ideologias monstruosas e irracionais, é que, ao fazermos isso, estamos de certa forma minimizando a gravidade nazifascista: monstros irracionais não têm controle sobre seus atos. A culpa do nazifascismo por todos os crimes cometidos existe porque seus primeiros apoiadores foram livres para defender racionalmente princípios que mais tarde se provaram moralmente hediondos. Não podemos vulgarizar a defesa pública de partidos nazistas ao descuido de se "falar merda".

No Brasil, a ameaça que um dia tenhamos que enfrentar um regime supernacionalista de fundamentos teocráticos, nasce com o slogan protofascista "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos".

"O grande isolamento é cercar-se daqueles que pensam igual a você". A frase contida no livro "A Banalidade do Mal" —escrito pela filósofa judia alemã Hannah Arendt, que também viveu uma relação intelectual e amorosa com um nazista, o filósofo Martin Heidegger— e o envolvimento de Margherita Sarfatti com o fascismo são dois exemplos para quem se esquece que o racismo biológico e o antissemitismo foram os piores, mas não foram os primeiros males nazifascistas.

Tudo começou com a vulgaridade de todos que o defendiam.

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