André Liohn

Fotojornalista especializado na cobertura de guerras, vencedor da medalha Robert Capa

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Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia

Crimes de guerra na Ucrânia impedem que ferida aberta pelo conflito seja curada

Restrições ao trabalho da imprensa tornam diálogo e acordo entre as partes mais difíceis

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A caminho de completar dois meses desde que tentou tomar Kiev numa invasão-relâmpago, o Exército russo deixou áreas importantes ao redor da capital ucraniana depois de repetidos fracassos em suas investidas.

O recuo está abrindo as janelas para que o mundo conheça as condições de vida infernais sob as quais os civis que não puderam deixar as zonas ocupadas viveram nas últimas semanas.

Corpo de uma mulher, ao lado de uma bicicleta, em uma rua de Butcha, nos arredores de Kiev
Corpo de uma mulher, ao lado de uma bicicleta, em rua de Butcha, nos arredores de Kiev - Zohra Bensemra - 2.abr.22/Reuters

Nos subúrbios de Kiev —principalmente nas cidades de Irpin, Butcha e Hostomel, mas também em áreas mais afastadas na zona oeste da cidade ou às margens da rodovia que segue ao norte até Tchernihiv e a fronteira com a Belarus—, centenas de corpos de civis foram encontrados, assassinados de forma cruel e sistemática.

Muitas das vítimas foram encontradas com as mãos amarradas atrás do corpo. Indivíduos covardemente subjugados e mortos com disparos à queima-roupa na cabeça. Um homem caído ao lado de sua bicicleta e de pequenas malas, como se tivesse sido atingido ao tentar deixar às pressas aquele local.

Civis, homens e mulheres, abandonados no meio da rua, carregando pequenos pertences ou um pouco de comida. Pessoas sem vida em montes escondidos dentro de garagens escuras, algumas incineradas e outras ainda embaixo de pneus e galhos que deveriam ter queimado para que as provas fossem destruídas. Centenas de inocentes enterrados em valas comuns —como a prefeita de Motijin, assassinada com o marido e o filho.

A reação ucraniana também não foi menos feroz. Muitas colunas de veículos blindados russos, completamente destruídos por ataques aéreos ou de solo, foram reduzidas a lixo militar carbonizado e contorcido, espalhado por várias partes. Em Hostomel, uma unidade inteira das SOBR (Unidade Especial de Resposta Rápida) ainda queimava quando os primeiros jornalistas chegaram a tempo de documentar que dezenas de soldados especiais russos, os temidos Spetsnaz, haviam morrido durante o ataque.

A destruição nos primeiros dias da guerra do famoso Antonov AN-225, o maior avião do mundo, estacionado no aeroporto, provaria que os ucranianos também não se importaram muito com a precisão de seus ataques —é pouco provável que tropas russas, usando o aeroporto como base, pudessem se beneficiar lançando morteiros contra o avião dentro de um perímetro já controlado por eles.

Cercados, provavelmente com medo e exaustos, tendo passado dias sob ataque do Exército ucraniano sem ter a certeza de escapar, abandonados pela nação que os jogou ali prometendo que seria uma guerra rápida e que poderiam ser recebidos como heróis, os soldados russos voltaram-se contra a população civil presa nas áreas ocupadas.

Os crimes de guerra contra civis encontrados no entorno de Kiev aconteceram poucos dias depois que um vídeo mostrando o que seriam soldados ucranianos torturando e assassinando prisioneiros russos começou a ser compartilhado na internet.

No vídeo, que não pôde ser verificado de forma independente, homens tiram três prisioneiros encapuzados de uma van antes de atirar em suas pernas e matá-los —não sem antes forçá-los a ver os corpos carbonizados de outros soldados já livres do sofrimento que aqueles vivos apenas começavam a sentir.

Ambos os lados, Rússia e Ucrânia, negaram oficialmente que seus Exércitos tenham cometido crimes durante a guerra. As versões oficiais são de que as imagens dos civis mortos ao redor de Kiev e dos soldados russos sendo torturados foram fabricadas e distribuídas a jornalistas comprados, com a intenção de difamar as respectivas forças e provocar reações.

Devido ao grande número de imagens e relatos colhidos por jornalistas em campo, fica fácil entender que o governo russo, ao desqualificar o trabalho desses profissionais, assume que não tem argumento para negar que cometeu tais crimes —isso, por si só, já seria uma prova de culpa.

Do outro lado, a propagação de informações (muitas vezes mal-intencionadas) contra o Exército de Kiev, dando conta de que soldados nazistas ucranianos assassinaram a sangue frio quem havia colaborado com os russos, também não estaria acontecendo se o governo de Volodimir Zelenski não criminalizasse o trabalho de jornalistas e autorizasse o acesso da imprensa às áreas de combate.

Já que nem russos nem ucranianos permitem que jornalistas possam trabalhar com independência, é seguro supor que ambos estão cometendo crimes.

A violência dos dois lados nos últimos dias inaugura a guerra movida pelo ódio, pelo desejo de justiçamento, de vingança e intenção de devolver em dobro a dor sofrida. Nessas circunstâncias, sem observadores, o diálogo e o acordo entre as partes ficam mais difíceis. Cada um pode se apoiar apenas nas chagas ou na propaganda que melhor lhe servir.

Numa situação de vale-tudo, a tortura do inimigo e a execução de inocentes, e mesmo muitas mortes de civis e militares, seriam incapazes de impedir que a violência continue ou prolifere. Crimes de guerra, apesar de suas distintas proporções, pioram tudo, impedindo que a ferida aberta pelo conflito seja curada.

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