Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Depois de intervenções em cultura e ciência, Rio é cereja do bolo

Presidente trouxe do começo da República os interventores, justificados por ideias e práticas antigas

Reza o "Aurélio" que intervenção significa "ato de intervir", "intermédio", "cirurgia" ou "ação conciliadora de terceiro". Nossa vida pública recente desusa o último sentido e dilata o primeiro.

Palavra é desobediente: há as que escapam dos dicionários e as que se impõem páginas adentro. Eles é que correm atrás delas. Seus sentidos dependem do contexto. Assim, se intervir é para o bem ou para o mal varia de acordo com circunstância e interventores.

Não faz muito, o termo sugeria artista fazendo política. Ferviam intervenções urbanas do gênero instalação, grafite, performance, parada, feira, peça, debate, exposição em ruas e praças, além de flash mobs e os redivivos bloquinhos de Carnaval.

"Intervenção" remetia a circuito cultural alternativo, de cidadãos se apropriando de espaços públicos para contestar práticas, costumes, valores. E pendia à esquerda, vide os 111 corpos do massacre do Carandiru pintados em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo.

Agora. artistas estão ariscos com o substantivo e migraram para "ocupação". Termo novidadeiro para ato veterano: está aí desde os sit-ins em parlamentos no século 19, voltou na campanha americana pelos direitos civis e viralizou na sequência mundial de "occupies". O MST usava a tática sob outro nome ("invasão"), o MTST a repaginou para ocupar territórios urbanos e corações famosos.

Trocar "intervenção" por "ocupação" não é jogo de palavras. É guerra lexical. Uma turma foi "ocupar" porque outra começou a "intervir". A intervenção cultural na política cedeu lugar à intervenção política na cultura. A série já é respeitável: atos contra nus em museus e ideias políticas na escola, cercamento do espaço público no Carnaval etc. A lista é comprida e adentrou a universidade.

A intervenção precursora foi a econômica, atrasando salários na Uerj. Outra foi jurídico-policial. Na Universidade Federal de Santa Catarina, resultou no suicídio do reitor; na UFMG, em condução coercitiva de reitor e professores. A da vez é administrativa.

O ministro da Educação a praticou na UnB ao estilo "polícia do pensamento". O pomo da discórdia é outra vez o sentido das palavras. Se o curso de Luís Felipe Miguel tratasse da "crise política do impeachment", capaz que o ministro usasse seu tempo para enfrentar nossos 260 anos de atraso educacional, delatados no Pisa. Mas o professor definiu a saída de Dilma do governo como "golpe".

Desde a queda da presidente, cientistas sociais discutem substantivo —impeachment ou golpe— e adjetivos —parlamentar, midiático, empresarial etc. Dissenso corriqueiro. Nas ciências, convivem explicações alternativas, aceitam-se críticas e respeitam-se opiniões divergentes. As aulas do professor da UnB, como em qualquer universidade, persuadiriam uns alunos, outros não.

A implicância do ministro é que produziu a anomalia: o consenso. O efeito paradoxal da intervenção foi uma reação coletiva à censura, com cursos em cascata, pelo país e até no exterior, para disseminar o vocábulo proibido.

Às intervenções em cultura e ciência se somam aquelas no sistema político, feitas por juízes, promotores e tribunais. Às proverbiais do STF juntou-se esta semana a censura prévia do TSE a pesquisas eleitorais.

A intervenção militar no Rio é a cereja gigante deste bolo que não para de crescer. O presidente a justificou com ideias e práticas antigas. Além do lema positivista "ordem e progresso", trouxe do começo da República os interventores. Vieram —como sob Deodoro, Floriano e Vargas— "pôr ordem" nos estados. Em 1964, os militares o fizeram por conta própria. É este "progresso" que Temer se dispôs a expandir nação afora, em artigo de 1º/3 na Folha.

A variedade e a longevidade das intervenções mostram que o Brasil as aprecia. Todas se viam como "progresso", e as de 1889, 1930 e 1964 até se nomearam "revolução". Elas vinham combater a corrupção moral, como Bolsonaro, e a dos políticos, como o MBL, para salvar povo e Estado. Nenhuma delas cumpriu a promessa.

Mas tão difícil quanto aprender a conjugar o verbo "intervir" é aprender com a história. Por isso, o padrão perdura. Outra vez o delatam as palavras, agora as do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que chamou o que se passa no Rio de "intervenção meia-boca".

Meia-boca, mas com bala na agulha. O chumbo nos morros cariocas atingirá seu alvo costumeiro: corpos pretos e pobres, que ali vivem e ali morrem, sem as intervenções que os promoveriam à cidadania.

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