Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Com paralisação, regras que estruturam o cotidiano se esfrangalharam

Como em 2013, abundam rótulos e pautas, mas empuxe agora veio pela direita

"Depois de enfrentar tudo aquilo, de fazer tudo aquilo, (...) havia decidido não mais sair do seu carro, à espera de que a polícia dissolvesse de alguma forma o engarrafamento. (...) Tudo era cheiro de gasolina (...); entre uma e outra parada discutira-se a situação nos menores detalhes (...)".

Parados, discorriam sobre "(...) o governo, o calor, os impostos, o tráfego, um assunto atrás do outro, três metros, outro lugar-comum, cinco metros, uma frase sentenciosa ou uma maldição contida".

Este é Julio Cortázar, no conto "A Autoestrada do Sul" (que está no livro "Todos os Fogos o Fogo"), mas podia ser a imprensa brasileira cobrindo filas nos postos de gasolina nos últimos dias.

Assim no conto como aqui, as regras que estruturam o cotidiano se esfrangalharam. Falta comida, opera mercado negro e ninguém entende bem o que acontece. Como na ficção, brotam grupos, cada qual com sua lógica, sem liderança que os aglutine.

Autoridades conclamam à ordem, incapazes de reinstituí-la. Nem presidente, nem governador, nem militares, convocados para salvar a pátria, trouxeram varinha, caneta ou metralhadora mágica.

A mobilização se alimentou do impasse, conhecido aglutinador de insatisfações difusas. E agora, como em 2013, novos grupos, estratégias e pautas foram dando as caras. Tal qual então, a perplexidade foi rápida no batismo, porque nomear é meio caminho para explicar. Atribuiu-se sentido por semelhança: parece greve, deve ser greve. Será mesmo?

O fenômeno tem, segundo o cientista político Sidney Tarrow ("The Language of Contention", a linguagem da contenção, Cambridge University Press, 2013), pai inglês ("strike") e mãe francesa ("grève").

E saiu cedo de casa, levando na bagagem o sentido de suspensão coletiva de atividade para arrancar de empregadores vantagens para trabalhadores. A primeira greve foi de marinheiros —que, em 1768, pararam o porto de Londres para punir donos de navio. O resto é história.

Foi ao termo "greve" que a mídia se agarrou para descrever a ação dos caminhoneiros. O Google o testemunha. Mas parte dos que protestam vem dos cerca de 40% de caminhoneiros que são autônomos.

Os demais são empregados que protestam com os patrões, em vez de contra eles. Se estão juntos no enfrentamento do governo, soa mal chamar de "greve".

A palavra foi para a corda bamba em que sacoleja Temer. Seus asseclas tentaram "locaute", dedo em riste para conluio dos barões dos transportes. Mas o nome envelheceu com a chegada de manifestantes alheios ao setor viário.

Desde então, designações se perfilam como os dias de bomba seca: protesto, concentração, bloqueio, manifestação, paralisação, levante, piquete. O desnorteio é coletivo.

Trata-se de movimento social? Difícil definir pela forma de ação, pois há tanto braços cruzados quanto pneus queimados, pacatos cartazes e ameaças violentas. Também o foco temático se dissipou e a movimentação foi acumulando novas demandas.

Tampouco se trata de atores de posição social única: os manifestantes são empregados, empregadores, autônomos. Nem dá para atribuir tudo ao carisma de um líder, nem ao civismo das massas. Há muitos grupos, nenhum comando unificador.

Parece 2013? Parece.

E não é só porque estamos em junho. Tal qual em 2013, abundam rótulos, atores, pautas, símbolos. Como então, patina o governo, aturdem-se os analistas, divide-se a imprensa, cresce o apoio público.

Mas, ao inverso, o empuxe agora veio pela direita, com a esquerda caudatária. Desta vez estão na dianteira empresários, autônomos e grupos pró-militares que chegaram mais tarde em 2013. O que se assemelha é a reação do governo: bate-cabeça de assessores, bate-boca com aliados. O desfecho de Dilma se conhece, foi imolada. Já Temer está tostando nos pneus fumegantes.

Mas há dissonâncias. Se em 2013 a presidente excomungada trazia o sacramento do voto, o governo atual carece desta bênção, como da água benta da popularidade. Os arautos do "novo" supuseram, em 2013, que se redimiria o país. Mas quem está aí a dirigi-lo são os velhos pecadores.

Agora, ninguém mais crê em milagres. Como diria Regina Duarte, a profetisa nacional: o medo venceu a esperança. Medo do desabastecimento, da violência, do caos. Medo do passado insepulto.

Em "A Autoestrada do Sul", o congestionamento se desfaz depois de dias de desconfortos e conflitos. Acaba como começou, sem explicação nem redenção.

Talvez também o Brasil esteja preso numa das histórias circulares de Cortázar, como o personagem de seu conto "Continuidade dos Parques", quando o que parece ficção vira realidade.

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