Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Os campos da política e do Judiciário são de macho desde sempre

Ao contrário do que apregoam arautos da direita, o Brasil não teve uma 'revolução' de gênero

A Flip, este ano, tem curadoria de uma mulher e homenageia outra. A coincidência é inédita num campo em que todos, todas e todes são pró-igualdade de gênero. É que, até neste reino "soft" da cultura, predominam os homens.

 

Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília
Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília - Daniel Carvalho - 4.abr.2018/Folhapress

Mesmo em veículos pop, os colunistas sobrepujam as coleguinhas. A desproporção é maior na mídia tradicional e nos "assuntos sérios". Idem nas ciências: a USP tem mais professores (62,1%) do que professoras. Quanto mais alta a hierarquia e mais valorizado o campo, maior a discrepância.

O bicho pega mesmo onde mora o poder. Tivemos uma única ministra da Fazenda. E, no mercado, 39,1% das chefias são femininas, mas com salário menor que de seus equivalentes masculinos, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Piora quando as moças teimam em subir na vida: aquelas com ensino superior completo ganham 63,4% do que auferem homens de igual qualificação.

No Judiciário, a fotografia parece melhor, com senhoras nos altos postos. São exceções na modorrenta função de confirmar a regra: 62,7% da magistratura é masculina, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Os partidos estão obrigados, nesta eleição, a gastar 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha com candidatas. Como ninguém disse como se porá o guizo nestes gatos, é de supor que a política nacional seguirá com gatas pingadas.

O campo é de macho desde sempre. O voto feminino é de 1932. Dois anos depois, a Câmara teve sua desbravadora, mas daí até 1978, as deputadas não ultrapassaram 1,4% da Casa. A redemocratização pouco afetou a situação: elegeram-se 26, em 1986. O número subiu lentamente, batendo em 45 em 2006 e 55 (ou 10,7%) em 2014.

No Senado, a proporção é pouco maior (16%), mas as 13 atuais têm precursora mais tardia, Eunice Michiles, empossada em 1979, por morte do titular. Os colegas a receberam com flores, esclarecendo, ironizou a própria, que "Meu papel no Senado era ficar quietinha, me comportar como uma dama". Suas duas sucessoras, eleitas em 1990, partilharam seus apertos: o Senado só inaugurou banheiro feminino em 2016.

Em 1986, estreou uma governadora, outra vez por vacância. Pelo voto só em 1994, quando Roseana Sarney inaugurou série curta, de oito eleitas. Somando vices empossadas, foram 11 contra 122 governadores (91,7%). Nada indica mudança este ano: até aqui são homens 84% dos que concorrem.

Os cândidos verão o lado bom: tivemos uma presidenta e mulheres pleiteiam seu posto. Mas Dilma sofreu impeachment e mídia e adversários tomam Marina por sonhática e Manuela por meninota. Sempre a estratégia de rebaixar, por ingênuas ou despreparadas.

Elites culturais pró-igualdade carecem de força para alterar fenômeno tão enraizado como a dominação masculina, mas constrangem sua enunciação pública.

Partidos agora põem mulher na chapa para ficar bem na foto. Selecionam, contudo, as que sabem seu lugar. A vice de Paulo Skaf tem doutorado, mas ele a escolheu por ser "uma moça de família boa e é uma coronel suave, não tem nada de truculência". Bolsonaro tem baciadas de frases piores e hesita em aceitar Janaína Paschoal. Adepta do mesmo conservadorismo alucinado, poderia ofuscá-lo.

Já Ciro Gomes tentou se redimir do "a função dela é dormir comigo", mas reincidiu, chamando promotora de "filho da puta". Ignorar o gênero de quem atacava não o inocenta. O xingamento é o mais machista dos nacionais, porque ultrapassa seu alvo para detratar como "mulher pública" aquela que o concebeu.

Longe de boquirroto, o candidato do PSDB cultua as hierarquias tradicionais, mas honra seu partido e fica no muro nesta questão. E o PT cogita varões para o lugar de Lula, sem listar Dilma, com seus 24,4% de intenção de voto na praia de Aécio.

Ao contrário do que apregoam arautos da direita, o Brasil não teve uma "revolução" de gênero. Os avanços são parcos e lentos. Tolhida a eleger um dos "que têm aquilo roxo", a maioria da mulherada nem sabe em quem votar.

A desigualdade de gênero é sem fronteiras. Eléonore Pourriat a retratou em "Eu Não Sou um Homem Fácil". No filme, o mocinho bate a cabeça e acorda em sociedade de papéis invertidos: elas comandam política e economia e eles cuidam de casa e família, enquanto penam com roupa justa e depilação.

Mas isso é ficção. Fora dela, as que vão para a política sofrem para obter candidatura, recursos, apoios. E, se eleitas, correm os riscos de Dilma e Marielle.

O que é verdade, mas parece ficção, é a união de mulheres para realizar em agosto, no Rio, o primeiro Congresso Antifeminista do Brasil.

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