Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Para Bolsonaro e filhos, mulheres que o rejeitam são equiparáveis a animais

Cadelas seriam mulheres que governam seus corpos de maneira incompatível com a esperada das princesas

O país chega às eleições como ao juízo final. Tudo é dissenso. A última fronteira da discórdia tem a ver com gênero. A política de saias ganhou saliência inédita em disputa eleitoral no Brasil.

Parte dos brasileiros se encheu de ânimo, quando uma mulherada —de diferentes classes e gerações, orientações políticas e sexuais— saiu às ruas em sonoro #EleNão. Sozinhas ou com filhos, pais, amigues, esposas ou maridos, celebramos a resistência conjunta. 

Um cartaz no largo da Batata resumiu o espírito da mobilização: “A fraquejada vai te derrubar”. As pesquisas registravam a mesma barreira contra o candidato machista. 

Mas o quadro mudou. Cresceu o apoio feminino em sentido contrário, nas redes (com páginas exclusivas), nas ruas (com manifestações “mulheres com Bolsonaro”) e nas primeiras pesquisas divulgadas após as manifestações do final de semana.

É que inexistem as “mulheres em geral”. A pertença à mesma categoria demográfica não significa valores compartilhados, conduta semelhante ou ativismo unificado. A reação retomou os estereótipos de feminilidade que circulam desde a posse da presidenta: a machona, como Dilma, teria ido ao #EleNão e a princesinha, à la Marcela, ao #EleSim. A disjuntiva se repaginou com os rótulos “cadela” e “Cinderela”.

O enunciador da clivagem é dos Bolsonaros nascidos sem “fraquejada”. Trata-se de Flávio, candidato ao Senado pelo Rio, que postou no Facebook em abril o clipe “Funk do Bolsonaro”. A letra de MC Reaça é autoexplicativa: “E pras feministas, ração na tigela/ As mina de direita são as top mais bela/ Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”. 

Esta foi a trilha sonora, em companhia do hino nacional, da “Marcha da Família com Bolsonaro”, no Recife. Sua letra distingue dois perfis femininos. Cadelas seriam as mulheres que governam seus corpos e mentes de maneira incompatível com a moral e a estética esperada das princesas. 

As primeiras são reduzidas a putas desprezíveis, já as segundas se habilitam a mães de família respeitáveis. O funk não deixa dúvida sobre a melhor escolha: “O Bolsonaro casou com a Cinderela”. 

O vídeo se ilustra com foto do último casamento do candidato e omite suas ameaças, até a velada de assassinato, quando a esposa anterior descambou da categoria Cinderela à de cadela. O letrista cala abalizado, já que a ofendida perdoou, em troca de candidatura.

Atenção para não confundir o filho funkeiro com o deputado federal que pleiteia reeleição por São Paulo. Difícil distinguir, porque Eduardo também herdou o sangue quente e as ideias do pai, inclusive no quesito gênero: “As mulheres de direita são mais bonitas que as mulheres de esquerda. As mulheres de direita não protestam com o peito para fora, não defecam para protestar. Ou seja, as mulheres de direita são mais higiênicas que as mulheres de esquerda”.

Somando as falas dos filhos, apenas rejeitariam o pai as mulheres equiparáveis a animais nojentos. O tipo inclui quem “é muito feia”, como Bolsonaro definiu a deputada Maria do Rosário, com o corolário: “Não te estupro porque você não merece”.

O sincericídio do candidato a vice, Hamilton Mourão, acresceu à depreciação das feministas peludas a das chefes de famílias pobres. Em palestra a empresários, interrompida duas vezes por palmas, esclareceu que “problemas sociais” nada têm a ver com desigualdade ou pobreza, mas com criminalidade, cuja raiz achou nos pecados das filhas de Eva. 

Suas famílias “dissociadas”, porque chefiadas por “mãe e avó”, seriam a “fábrica de elementos desajustados que tendem a ingressar nessas narcoquadrilhas”. 

O quartel-general do candidato do PSL rebaixa todas as mulheres. São sujas ou parideiras de “vagabundos”. Na melhor hipótese, são Barbies. 

Mas, se pensarem por si, serão enquadradas, como fez Eduardo Bolsonaro com a jornalista Patrícia Lélis, conforme denúncia da Procuradoria-Geral da República em abril: “Depois reclama que apanhou. Você merece mesmo. Abusada. Tinha que ter apanhado mais pra aprender a ficar calada. Mais uma palavra e eu acabo com você. Acabo mais ainda com a sua vida”.

A maneira de lidar com as mulheres desvela o sentido da candidatura Bolsonaro. Trata-se de um autoritarismo violento e intolerante. 

Não é preciso ser feminista nem de esquerda para dizer #EleNão. Na política, há mulheres representando todos os naipes aceitáveis num Estado de Direito. Quem recusa Manuela conta com Ana Amélia, Kátia, Marina e Sônia, todas profissionais de seu ofício, nem princesas, nem cadelas.

Se você é democrata, hoje precisa votar em uma delas. Nele, não.

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