Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Futuras ministra e primeira-dama querem universalizar seu padrão moral

Damares Alves quer proteger a família, mas apenas a consanguínea, heterossexual e religiosa

"A mulher nasceu para ser mãe." Quem opina é a pastora Damares Alves, indicada para o novo Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos. Novo por agregar direitos humanos e gênero, como por interpretar o tema a contrapelo.

Em vídeo no Dia Internacional da Mulher deste ano, declarou: "Hoje, a mulher tem estado muito fora de casa. Costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade". 

Damares batalha por esse ideal. No YouTube, exorta contra a "erotização infantil", a "desconstrução da família tradicional", a "guerra" entre os sexos, o aborto, os movimentos LGBT e feminista.

a futura ministra Damares Alves fala à imprensa com o dedo indicador em riste
Damares Alves foi indicada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro a assumir o Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos - Sergio Lima/AFP

Não prega sozinha nem no deserto. Além de apadrinhada pelo pastor-cantor Magno Malta, conta com o apoio de associações antiaborto, antilegalização de drogas, grupos militares, evangélicos e católicos, que estão entre os 118 grupos subscritores de carta ao eleito em seu favor. Tanto apoio brota da consonância entre o que sai de sua boca e o que mora na cabeça dos bolsonaristas de coração.

Damares é das convictas. A dicção de púlpito e o estilo mãe de família exprimem, com eloquência e sem elegância, uma faceta da retórica bolsonarista: o patriarcalismo.

Trata-se de extrapolação da lógica do mundo privado tradicional para a esfera pública moderna. Recorre em discursos, postagens e vídeos da futura ministra —como de eleito e filhos. Aí se evoca o princípio da sociedade patriarcal: a família como esteio e modelo de toda a organização social. Dela emanariam os comportamentos saudáveis, os valores legítimos e as opções políticas acertadas. 

Esfumada a fronteira entre público e privado, lealdades de clã e de credo inundam a política. E arrastam consigo o seu ímpeto de mais afeto e autoridade do que de racionalidade e mérito. 

Nesta retórica, a hierarquia de gênero tem posto de honra. A masculinidade surge como superioridade inata que capacita ao mando. 

Ostentam-se a virilidade congênita, dádiva da biologia, ou a inflada por suplementos e halteres. O corpo atlético, militarizado, é polissêmico: signo de boa saúde (a salvo das drogas), capacidade reprodutiva (preservada pela heterossexualidade) e disposição para o combate (o físico em detrimento do intelectual). 

Seu complemento igualmente "natural" é a subordinação feminina. Cabem às mulheres papéis prescritos. Um é o de princesa, com inocência a ser protegida (como Bolsonaro com a filha) e cuja conformidade se homenageia (com mimos, alude Damares). Em contraponto à estética "feminazi", o #EleSim cultuou o feminino como a habilidade de seduzir o sexo oposto.

Outra posição é de complemento, a rainha do lar. Como esposa, cabe-lhe compreender e apoiar, como mãe, reproduzir e educar. Deve gerir casa e família, vigiar para que a desordem moral do mundo não conspurque o reino doméstico. 

A primeira-dama que se despede combina os dois primeiros papéis. Damares compõe fatia das bolsonaristas que optaram pelo terceiro, a participação na vida pública. 

Trata-se de ativismo moralizador que, em vez de disputar o mando ou lutar por direitos, assume deveres. A dedicação aos necessitados se faz via igreja (no caso da pastora) ou pela filantropia, caminho provável de Michelle Bolsonaro, vinculada ao Ministério de Surdos da Igreja Batista Atitude. 

Essas senhoras zelam também pelos bons costumes. Hipertrofiam seu padrão moral, aspirando a universalizá-lo. A ambição comparece no proselitismo da "escola sem partido" e no embaraço em lidar com a sexualidade, como no fantasioso "kit gay". 

O fulcro é salvar a família. Damares o sumariza: "Nos últimos 15 anos, essas pautas progressistas não ajudaram em nada a conter a violência, não ajudaram em nada a proteger a família". 

É de proteção que se trata. Mas não a qualquer família, apenas à consanguínea, heterossexual e religiosa —como a da maioria dos brasileiros. 

Essa retórica não é conservadora, é reacionária. Por isso mesmo tem efeito e faz sucesso. Ao contrário das utopias de esquerda, que prometem futuro incerto, ela pleiteia o retorno a passado conhecido, com seus valores, costumes e hierarquias antimodernos. 

Com tantos sistemas de crença e padrões de comportamento laicos e cosmopolitas em competição, muitos se sentem desenraizados, desorientados, desprotegidos. Anseiam pela sombra protetora de um patriarca. De preferência, armado.

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