Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Protesto não tem receita

Manifestação massiva é caldeirão que aceita de tudo um pouco

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Nada mais reconfortante que um prato pronto. A explicação rápida, estilo fast food, também aplaca a fome de intelecção e, sendo lógica, ganha do cardápio concorrente de fake news e alucinações psicóticas. 

Duas interpretações prêt-à-manger tem se espalhado aqui como fogo em palha, quando se fala dos protestos que abrasam governos do Chile a Hong Kong, do Haiti à Bolívia.

Uma aponta a desigualdade econômica como causa comum. Supõe-se que, como em todos os países onde há manifestações vigorosas há desigualdade, esta seria o fermento que faz crescer aquelas, logo, sua causa. Uma segunda tese foge à culinária e empresta da biologia a noção de “contágio”, como se protestar fosse virose.

A sociologia dos movimentos sociais, uma cozinheira de 50 anos, não tem receita pronta, mas torce o nariz para os dois guisados.

Muito debate sobre o tema corre nessa área desde os anos 60. Cada um mete a colher para definir a seu modo o que são megaprotestos, quem deles participa e com quais motivações. Apesar da celeuma, a convergência até que é alta quanto às matérias-primas impotentes para definir o sabor da iguaria.

O ingrediente, que pode temperar, mas não impõe seu gosto, é a desigualdade. Por mais apetitoso que seja o raciocínio, é impossível traçar sua relação direta com protesto. Como nenhuma sociedade jamais foi perfeitamente igualitária, se a desigualdade sozinha produzisse protestos grandes, haveria multidões na rua o todo tempo. E não é assim. 

Tampouco a economia manda na rua. Manifestações enormes aparecem em tempos de vacas magras (vide a Venezuela), mas também quando ainda estão meio gorduchas (no governo Dilma, em 2013, e no de Piñera). Desigualdade e protesto podem ocorrer juntos sem que um produza o outro. Correlação não é causa.

 
 

Além disso, pesquisas mostram que grandes protestos não recrutam apenas os menos privilegiados, contam com todos os estratos sociais. Manifestações pequenas podem ter base social identificável —uma profissão, uma etnia, um estilo de vida. As gigantescas o são porque atraem diversos setores da sociedade. A heterogeneidade lhes é constitutiva. 

Isso sem demérito dos fregueses da prática, estudantes e profissionais liberais —mais de posse de seu tempo que os batedores de ponto— que costumam estar na massa e por a mão nela na hora de organizar eventos do tipo.

E, como comparecem grupos sociais distintos, as reivindicações também acabam variadas. É típico de megaprotestos agregar pautas conforme adesões. Tornam-se forçosamente multitemáticas. Suas demandas raramente cabem numa só panela, progressista ou conservadora. Aliás, a direita faz política de rua há tanto tempo quanto e, às vezes, ao mesmo tempo que a esquerda (como aqui em 2013). 

Não é o tema que estrutura o fenômeno. Manifestação massiva é coordenação de insatisfações difusas com o governo de plantão. Caldeirão que aceita de tudo um pouco.

Uma coisa se sabe, ninguém se atira nele às tontas. Manifestações de vulto nascem de cozinhas bem fornidas em recursos organizacionais, redes de ativismo e ativistas denodados. Há estratégias de persuasão, planejamento e recrutamento antes e coordenação durante a ação de rua. 

Claro, há aderentes, mas quem adere não inventa. Improvisa a partir do prefigurado. Manifestantes podem se declarar acéfalos, mas quem pesquisa logo acha alguma coordenação da ação coletiva —digital e presencial, sofisticada ou frouxa. 

A coordenação cria novas e difunde velhas formas de protestar (tática black bloc, ocupações etc), símbolos (os guarda-chuvas de Hong Kong) e slogans. Nada disso circula pelo ar como vírus, mas empurradas por ativistas.

Por fim, sabe-se que respostas estatais podem arrefecer como incendiar protestos. Repressão violenta cresce o bolo de gente na rua em democracias, na defesa do direito de manifestação. Já regimes autoritários podem dizimar manifestantes, mesmo se seu número for colossal, como na Praça da Paz Celestial, em 1989.

Fora isso, abundam pesquisas, mas o consenso escasseia. Intérpretes afoitos que veem em toda nova grande manifestação a promessa de mudar o mundo para melhor costumam ver o caldo azedar pouco adiante. 

Com muitas faces, volátil e escorregadio, protesto grande pede investigação cuidadosa, apurada em fogo brando. O bom tempero do cozido explicativo combina ousadia e humildade, uma para fazer perguntas, a outra para admitir que não temos as respostas prontas. Quem tem pressa come cru ou janta prato feito.

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