Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Estrato social que apoia Trump precisa do Estado, mas o combate

Paradoxo é uma irracionalidade a serviço de um sentimento de desamparo

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O presidente abriu seu segundo ano de governo com ode à ignorância: “A partir de 2021, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo.” 

Não é a primeira —nem a última— vez que exibe anti-intelectualismo. Atacar ciência e erudição é um de seus esportes preferidos. Perde apenas para a obsessão com violência e sexualidade.

Seu elogio das trevas já nem espanta. Mas segue por entender por que tantos o endossam. Assim como Bolsonaro emula Trump, os entusiastas de ambos se parecem.

As pesquisas de dezembro do Gallup para os Estados Unidos e do Datafolha para o Brasil exalam o ar de família. Trump conta com base firme entre homens brancos (56%), de mais de 55 anos, faculdade incompleta (51%) e conservadores nos costumes (74%). O Gallup não perguntou desta vez, mas nas anteriores predominavam evangélicos. Aqui, parte do entusiasmo escorreu pelo ralo, mas segue firme entre homens brancos (37%), evangélicos (36%) e com mais de 60 anos. 

A parecença se prolonga no espanto que as duas eleições geraram. Lá e cá, choveram livros escritos às carreiras, sem furar a superfície do fenômeno. 

Embora governistas vejam cientistas sociais como cigarras, a pesquisa boa é de formigas, meticulosa e demorada. No Brasil será preciso esperar, mas, para o caso americano há “Strangers in Their Own Land - Anger and Mourning on the American Right” (estranhos em sua própria terra - raiva e luto na direita americana), de Arlie Hochschild.

A professora de sociologia da Universidade de Berkeley acompanhou por cinco anos apoiadores do Tea Party na Louisiana. Seu livro calhou de sair em 2016, perto das urnas, e oferece uma explicação para o trumpismo.

Em vez de cavoucar relações frias na internet, Hochschild foi ao cotidiano quente das pessoas comuns, em cidades médias do fundão do país. Ali onde o Tea Party fincou raiz, deu com largo contingente de wasps amargurados. Além de assolados pela recessão de 2008, viviam em meio ambiente que a indústria devastou antes de abandonar.

Hochschild coletou as queixas. Muitos sofriam mobilidade descendente. Apressados logo atribuiriam seu descontentamento à economia, mas não era assim que os futuros trumpistas justificavam sua posição política. Suas reclamações eram políticas, acerca do tipo de intervenção que o Estado exercia em suas vidas. 

Dividiam a sociedade entre “makers”, como viam a si mesmos, os que se fazem na vida pelo próprio esforço, e “takers”, como descreviam os beneficiários de programas sociais do governo Obama. O Estado extorquiria os “makers”, via impostos, para subsidiar os “takers”. Daí o sentimento de injustiça.

Embora políticas como o Obamacare os incluíssem, esses americanos as desdenhavam. Amparo em agruras deveria vir da comunidade, não do governo. Por isso doavam à igreja, pronta a prover nas emergências do dia a dia, e não atinavam para como a taxação estatal os ajudaria. Essa visão do Estado embasava uma aposta simultânea no individualismo do livre mercado e na solidariedade da comunidade religiosa.

Outro desconforto nascia da distância simbólica desses americanos médios em relação ao governo democrata. Viam-se excluídos das utopias de esquerda, que condenavam sua identidade e ameaçavam seus valores. As políticas identitárias valorizariam as minorias —negros, mulheres etc— e estigmatizariam o homem branco, hétero, obrigado pelo politicamente correto a reprimir seus sentimentos profundos sobre raça, sexo, religião.

O ressentimento resultante alimentou, argumenta Hochschild, um “grande paradoxo”: esse estrato social, que sofria problemas econômicos, sociais e ambientais, precisava do Estado, mas o combatia. Uma irracionalidade a serviço de um sentimento de desamparo. A mídia (Fox News) e um movimento social (Tea Party) seriam hábeis em dirigir essa insatisfação para uma política antiestablishment. Essa “história profunda” precedeu a vitória eleitoral de Trump. 

Há semelhança óbvias com o Brasil, mas a diferença é crucial. 

Trump conta sobretudo com os menos educados. Aqui é a elite nacional quem está feliz com Bolsonaro: 35% dos que têm diploma superior, 52% daqueles com dez salários mínimos ou mais e 58% dos empresários acham o governo bom ou ótimo. Gente que sabe ler, mas só tem olhos para os números da economia. Crentes de que eles expliquem tudo, provavelmente não abrirão livros como o de Hochschild, onde tem “muita coisa escrita”. 

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