Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Famílias de Bolsonaro e de Caetano Veloso se enraízam em paralelas históricas

Tão distintas em tanto, as famílias se assemelham neste ponto: os pais subiram e transmitem aos filhos oportunidades para permanecer no topo

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Rituais celebram e escancaram. O Dia dos Pais tanto compõe o calendário capitalista de compras como expressa um padrão de paternidade.

O comercial da Natura dividiu a internet, a arena pública da pandemia. Houve quem nem distinguiu Thammy Miranda entre tantos pais descolados. Já outros, como Silas Malafaia, viram a presença de um homem trans na propaganda como o fim dos tempos.

No lado descolado, bombou a live de Caetano Veloso. Em frente à estante repleta de símbolos calculados, esbanjou charme, cercado de filhos também músicos. São três, de casamentos diferentes, compondo família culta e chique.

Emocionaram o "Brasil moderno", que ali reencontrou-se a si mesmo, como no espelho: sua estética, seu estilo de vida, seu "sonho feliz de cidade". Foi quase uma missa. Os órfãos da utopia social-democrata solapada reverenciaram Caetano Emanuel. Este segundo nome do ídolo, em Mateus 1:23, significa justamente "Deus conosco".

Mas, como Malafaia esclareceu, Deus também foi convocado pelo outro lado, o dos apreciadores das lives, não de profeta, mas do próprio Messias. A família Bolsonaro suplanta a Veloso no número de XYs, mas tem iguais três varões seguindo o pai no ofício. O quarto deve seguir a fila. É clã de machos rudes, a exibir testosterona —o presidente até teve, disse de voz própria, apartamento funcional "para comer gente".

As duas famílias se enraízam em paralelas históricas. O futuro pai Jair se formou com os que torturavam aqueles que, como o futuro pai Caetano, "estava preso na cela de uma cadeia". A experiência da ditadura segue viva, para um, como nostalgia e projeto, para o outro, como abominação e pesadelo.

Nas redes muitos falaram de "saudades" do Brasil de Caetano. Mas o dele e o de Bolsonaro não são países apartados, um moderno, outro tradicional. Já se esclareceu em verso e prosa, seu amálgama duradouro. Chico de Oliveira o chamou de Ornitorrinco, Edmar Bacha, de Belíndia. Entrelaçamento de civilização e atraso, de promessas e violências.

Mundos parentes, ainda que briguentos em Natal pós-eleição. Os traços de família sobrevivem no fundamental: a reprodução das posições. As relações políticas de Bolsonaro, cruciais para fazer carreira neste meio, transferem-se como código genético. Os filhos do político são políticos. Mas os filhos do músico também são músicos, herdam capital cultural para triunfar no meio artístico.

Tão distintas em tanto, as duas famílias se assemelham neste ponto: os pais subiram e transmitem aos filhos oportunidades e recursos para permanecer no topo. Legam seu bom lugar no mundo: o patrimônio imaterial, redes de relação que catapultam e protegem, e o monetário, tangível, que será literalmente herança.

Estas duas elites disputam o "projeto" de país, como gosta uma, ou sua "missão", como prefere a outra, enquanto lá embaixo o mundaréu de filhos sem legado purga as consequências.

O mesmíssimo mecanismo repete sobrenomes conhecidos nas posições de prestígio, poder e dinheiro, num prolongamento dos pais nos filhos, e mantém os menos sortudos no nascimento onde estavam seus ancestrais: na subalternidade.

O estrato de Matheus Fernandes, que não é o evangelista, mas é negro, ouve, geração após geração, da outra classe de Matheus, o racista de Valinhos: "fique no seu lugar". Este versículo do evangelho brasileiro predestina os Matheus, como os filhos de Emanuel e de Messias, a seguir o caminho de seus pais.

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